"DATA VENIA", O SUPREMO
Picuinhas se imiscuem em decisões importantes,
assessores fazem o serviço de magistrados, ministros são condenados em
instâncias inferiores, um juiz furta o sapato do outro – como funciona e o que
acontece no STF
por Luiz Maklouf Carvalho
O primeiro bocejo foi do ministro José Antonio
Dias Toffoli. Com as mãos em concha, sobre a boca. Depois foi Gilmar Mendes,
com a proteção de uma das mãos, e por três vezes em menos de dez minutos. Marco
Aurélio Mello o seguiu, com dois bocejos. Eles escutavam Ellen Gracie ler um
relatório. A voz da ministra tem um timbre agradável, mas sem modulação. Em
plenário, à exceção de poucas frases curtas sobre questões pontuais, a ministra
nunca fala, só lê. E sempre de maneira monocórdica.
O caso em pauta era uma ação contra os deputados federais Alceni Guerra e
Fernando Giacobo, denunciados por fraude em licitação. Tramitava no Supremo
Tribunal Federal desde 2007 e prescreveria exatamente no dia seguinte. Ellen
Gracie, relatora, votou pela condenação dos dois políticos*.
Com o ministro Eros Grau em viagem, dez ministros estavam presentes. Quatro
votaram com a relatora, condenando os políticos: Cezar Peluso, Ayres Britto,
Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia. Quatro os absolveram: Dias Toffoli, Marco
Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Celso de Mello. E um, Ricardo Lewandowski,
desafiou o senso comum: inocentou Alceni Guerra, ministro da Saúde do governo
Collor, mas condenou o outro acusado.
Ficaram, então, 5 a 5 para Alceni Guerra, o que o absolveria, porque o empate
favorece o réu. E 6 a 4 contra Fernando Giacobo, o que o condenaria.
A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, resumiu bem a confusão:
“Neste caso, teremos o réu principal absolvido; e o secundário, condenado.”
A cizânia se estabeleceu. “Condenar um e absolver o outro fica muito difícil”,
disse o ministro Marco Aurélio, olhando fixo para Lewandowski. Cezar Peluso
também o encarou: “Reconsidere seu voto e absolva os dois.” Lewandowski
encabulou-se e disse, titubeante: “Tenho dificuldade de absolver o outro.”
Marco Aurélio riu com sarcasmo. Peluso insistiu para o colega mudar o voto.
Ellen lembrou que a prescrição ocorreria no dia seguinte.
Quando o presidente Gilmar Mendes ia proclamar o resultado, o advogado do
condenado apelou pelo bom-senso: que os dois acusados fossem absolvidos. O
ministro Ayres Britto, num mau momento, sugeriu a suspensão do prazo de
prescrição, como se fosse possível. “Mas aí vamos legislar”, protestou Marco
Aurélio.
Diante do bafafá e da pressão, um constrangido Lewandowski disse: “Eu reajusto
o meu voto e absolvo ambos os réus.” Marco Aurélio riu de novo. Ayres Britto
podia ter deixado por menos, mas não deixou: “Vossa Excelência mudou o voto,
não é?”, indagou, como se não tivesse notado. Lewandowski respondeu: “A situação
é absolutamente atípica.”
A veia poética de Ayres Britto, sempre presente, lembrou-lhe versos de José
Régio, que recitou sem pejo: “Não sei por onde vou. Só sei que não vou por aí.”
Resolveram suspender a decisão, apesar da prescrição no dia seguinte, para
esperar o voto do ministro Eros Grau. Ele o proferiu uma semana depois, e votou
pela absolvição dos réus – que na prática estavam beneficiados pela prescrição.
Órgão máximo do Judiciário e sustentáculo da República, o Supremo Tribunal
Federal é uma instituição que toma decisões de afogadilho, sem muita lógica –
como a mudança de voto de Lewandowski. Mas sempre as recobre de pompa, de um
linguajar precioso que faz sobressaírem as observações maldosas. Picuinhas se
imiscuem em discussões importantes. Assessores fazem o serviço de magistrados.
Há ministros que foram condenados em instâncias inferiores. Um, cujo pedido de
impeachment só não foi encaminhado ao Senado porque o corporativismo
prevaleceu. Outro, que chamou o colega de chefe de capangas. Até a eleição do
seu presidente se dá em terreno incerto.
Na última delas, em março, os onze ministros escolheram o presidente para o
biênio 2010–12. Com grande seriedade, e o silêncio respeitoso de uma plateia
repleta, cada um depositou um papel dobrado, com o nome do escolhido, na urna
em forma de cálice carregada por um funcionário. O escrutinador, como manda o
regimento, foi o ministro mais novo, Dias Toffoli, de 42 anos. Com destoante
jovialidade, Toffoli contou os votos e anunciou o resultado: dez votos para
Cezar Peluso e um para Ayres Britto. Gilmar Mendes saudou o seu sucessor. Na
resposta, o ministro Peluso registrou ter sido eleito “por uma regra costumeira
e singular”.
A “regra costumeira e singular”, que não consta do regimento, é a eleição do mais
velho. À exceção de uma vez – em 1943, quando Getúlio Vargas outorgou-se a
indicação do presidente por decreto, sem que a corte chiasse – o critério da
antiguidade prevaleceu. Com isso, sempre se soube, com óbvia antecedência, os
próximos presidentes. Eles serão, depois de Peluso, conforme a linha
sucessória, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Lewandowski, Cármen Lúcia e Toffoli.
Se não fosse sair do Supremo por força da aposentadoria compulsória dos 70
anos, que completa neste agosto, Eros Grau substituiria Joaquim Barbosa. (Grau
já resmungou que a raia miúda o serviria melhor se ele estivesse na linha de
sucessão.)
Por que simular uma eleição cujo resultado é conhecido? “É uma coisa
simbólica, que nos evita desgastes desnecessários”, disse o presidente Cezar
Peluso, sentado numa cadeira dos tempos do Império. Ela faz parte do acervo do
antigo Supremo que ainda estava no Rio. Trazê-lo a Brasília antes mesmo da sua
eleição foi a primeira marca do estilo Peluso. Autorizado pelo presidente que
saía e que não teve interesse pela mobília antiga – “Achei que havia coisas
mais importantes a fazer”, espetou Gilmar Mendes –, Peluso mobilizou primeiro a
seção de documentação e acervo. Depois, acionou o departamento de Arquitetura
(há um, sim), para que redesenhasse a planta com os velhos móveis.
“Vou propor que o gabinete seja tombado”, disse o ministro, satisfeito com a
nova decoração. As duas outras cadeiras do conjunto, as para as visitas, ficam
a alguma distância da mesa imperial. Atrás dela, Peluso defendeu com ardor o
critério por antiguidade. “A eleição formal é importante, porque, como o voto é
secreto, há sempre a possibilidade da divergência”, disse. Agora, se a votação
secreta levar à eleição de um ministro mais moço, sabe-se lá o que acontecerá.
“Estou feliz, sim, e gostando muito”, admitiu Peluso na sua segunda semana como
presidente. “É uma honra pessoal.” Pensou um pouco, e acrescentou: “O que me
incomoda é a incompreensão das pessoas.”
Era uma reclamação contra pequenos aborrecimentos, como o ocorrido durante a
sua posse, numa cerimônia solene para 1 500 políticos, juízes, advogados e
governantes, entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mesmo ciente de
que o regimento limita em três os discursos na posse – o do decano, Celso de
Mello, o do líder da Ordem dos Advogados do Brasil e o do novo presidente –
Peluso queria que um advogado em particular o saudasse, o seu amigo Pedro
Gordilho. O jeito era tentar convencer o presidente da oab, Ophir Cavalcante
Junior, a abrir mão da fala.
Roberto Rosas, outro advogado amigo de Peluso, convidou Ophir Cavalcante para
um jantar em sua casa e, pela conversa, achou que o tinha convencido a deixar
que Pedro Gordilho fizesse o discurso de saudação dos advogados. Na posse, o
apresentador chamou Gordilho a falar “em nome da comunidade jurídica”, mas em
seguida o presidente da oab o desautorizou, dizendo que só a Ordem podia
representar os advogados.
“Eu me contive quando ouvi aquilo”, disse Peluso. “Fiz um esforço de contenção
terrível: ele rompeu um acordo.” Esforço titânico, mas não totalmente eficaz,
pois quando Ophir Cavalcante terminou o discurso, Peluso fez a plateia rir ao
dizer que seu amigo Gordilho falara “em nome dos espíritos livres”, e não da
oab.
Peluso ainda não era da casa quando a escolha do presidente provocou a redução
dos seus poderes. O motivo foi a próstata dos membros do Supremo. Ocorreu em
2001, quando Marco Aurélio Mello estava fadado a substituir Carlos Velloso, e
avisou que demitiria todos os aposentados lotados nos gabinetes dos ministros.
“Sempre defendi que a aposentaria é para o ócio, e não para acumular renda”,
explicou.
O aposentado mais conspícuo, quase um patrimônio tombado, era o médico Célio
Menicucci. “Um homem que examinava a próstata dos ministros”, observou a
advogada Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima, então assessora de Marco Aurélio
e hoje casada com o ministro Gilmar Mendes. Ela avisou o novo presidente que
Menicucci era imexível, seja pelas próstatas, seja pela amizade que o ligava ao
ministro Moreira Alves, um dos baluartes da corte. Carlos Velloso foi outro a
alertá-lo: “O Moreira não vai aceitar isso de jeito nenhum.”
Como a indicação do segundo escalão era atribuição exclusiva do
presidente, Marco Aurélio fechou questão. Avisados, todos os aposentados
demitiram-se. Menos o médico. Só redigiu sua carta de demissão quando o próprio
Marco Aurélio o intimou, ao cumprimentá-lo numa cerimônia: “Doutor Célio, o
Supremo espera uma atitude sua.” A carta de demissão veio, mas a revolta
capitaneada por Moreira Alves já estava em curso.
À exceção do ministro Celso de Mello – e, obviamente, de Marco Aurélio – os
demais aprovaram uma emenda regimental que tirava do presidente o direito de
indicar o segundo escalão. Este, pela emenda aprovada, teria que passar pela
votação do plenário. “Foi um verdadeiro ai-5 contra mim”, disse Marco Aurélio
ao lembrar-se da história, ainda exalando emoção. “Ou eu aceitava, ou eles não
me levariam à presidência. Aceitei, mas aquilo foi uma violência.”
A grande figura do Supremo Tribunal Federal em seus primeiros anos não foi
nenhum ministro, e sim o advogado Rui Barbosa. Batendo-se por habeas corpus
para prisioneiros da ditadura de Floriano Peixoto, ele lotou as galerias com
discursos abrasadores. Foi o único advogado, na história do Tribunal, a quem se
concedeu o privilégio de não ter limite de tempo para falar. Está certo que foi
quase à força. Advertido pelo presidente de que o regimento concedia apenas
quinze minutos aos advogados – como hoje – Rui, que mal começara a peroração,
ameaçou: “Observo a Vossa Excelência que desse modo prefiro não defender a
causa.” E falou, em seguida, pelo tempo que quis. Rui Barbosa perdeu a causa,
os habeas corpus não foram concedidos, não houve revolta alguma: o que
acontece no Supremo raramente provoca comoção fora dele.
O STF foi, primeiro, Supremo Tribunal de Justiça – sucessor de uma Casa da
Suplicação do Brasil, instalada por dom João vi, em 1808, quando a corte
portuguesa fugiu das tropas napoleônicas para o Rio. Criado pela Constituição
de 1824, foi efetivado cinco anos depois, em 1829, composto por dezessete
juízes. Passou a ter o nome que tem – Supremo Tribunal Federal – no começo da
República, primeiro por decreto, e, depois, pela Constituição de 1891. Sua
primeira sede foi o prédio do Senado da Câmara do Rio, na atual Praça da
República. Depois funcionou na rua 1º de março. Eram quinze juízes, a maioria
oriunda do Império.
Floriano Peixoto foi o primeiro
presidente a violentar o Supremo – sem maior reação. Impôs ministros e deixou
de indicá-los a seu bel-prazer. Lá meteu dois generais e um médico. Este,
Barata Ribeiro, dá nome a uma das ruas mais conhecidas de Copacabana. Foi
ministro por quase um ano sem que o Senado aprovasse a sua indicação, e saiu
quando o Senado o rejeitou. Essa e quatro outras, no mesmo governo Floriano,
foram as únicas rejeições de ministros pelo Senado em toda a história do STF.
Getúlio Vargas também pisou no Supremo Tribunal Federal – inclusive com a
aposentadoria compulsória de meia dúzia de ministros, e com a proibição de apreciação
dos atos do Governo Provisório instalado em 1930. Com o golpe de 1937 e a
ditadura do Estado Novo, um decreto outorgou a Getúlio o poder de nomear o
presidente e o vice-presidente da corte.
Enquanto funcionou no Rio, os juízes do
Supremo não tinham maiores regalias. Carro, era só para o presidente. Quando
ele era Orozimbo Nonato, ficava na garagem se viesse a quebrar. No começo dos
anos 60, Márcio Thomaz Bastos, um advogado em começo de carreira, o viu tomar
um bonde, carregado de processos. Certa vez, Orozimbo Nonato ficou
escandalizado num verão lancinante, quando o ministro Luiz Gallotti pediu-lhe
que providenciasse dois aparelhos de ar-condicionado. “Até esse momento,
Gallotti, você seria o meu candidato ideal a presidente da República”, disse-lhe
Nonato. “Jamais pensei que pudesse revelar-se tamanho perdulário com o emprego
do dinheiro público.” Os gabinetes dos ministros tinham 20 metros
quadrados.
O Supremo também baixou a cabeça no golpe militar de 1964. Seu presidente,
Álvaro Moutinho da Costa, filho de general e irmão de coronéis, foi à posse de
Ranieri Mazzilli na noite de 1º de abril, quando João Goulart ainda estava no
Brasil. É verdade que, segundo a história oral do Tribunal, depois Moutinho da
Costa reagiu a ameaças do ministro do Exército, Costa e Silva, ameaçando fechar
a casa e mandar a chave da instituição ao Planalto. Mas nada aconteceu quando o
Ato Institucional nº 2 aumentou o número de ministros de onze para dezesseis.
Em 1968, a aposentadoria compulsória ceifou os ministros Victor Nunes Leal,
Evandro Lins e Silva e Hermes Lima. O
único a rebelar-se publicamente contra os militares foi Adauto Lúcio Cardoso:
em 1971, vencido numa votação contra a censura, ele retirou-se
intempestivamente do plenário durante a sessão de julgamento. Celso de
Mello, o que mais sabe sobre a história da corte, não confirma que Adauto Lúcio
Cardoso tenha jogado a toga sobre a bancada ao se retirar.
Sem a tv Justiça, criada nos anos 90,
muita coisa ficava entre quatro paredes. Por coincidência, a lei que a criou
foi sancionada pelo presidente da República Marco Aurélio Mello, que substituía
Fernando Henrique Cardoso por uns dias na chefia do Executivo. Mello é um
entusiasta da transmissão direta. Fernando Henrique, nem tanto. “Eu tenho
dúvida em relação à transmissão pela televisão”, disse-me ele no seu escritório
em São Paulo. “Porque a imensa maioria da população não entende aquela
linguagem. Nos Estados Unidos, duas coisas são muito diferentes daqui: não sai
nada, não pode nem fotografar, e tudo aparece como se fosse consensual. Nós não
podemos transformar a Corte Suprema em outro congresso. Congresso é diferente:
tem quer ser aberto, transparente, refletir até mesmo a certa desordem que há
no Brasil. Mas o Supremo? Deveria ser mais litúrgico.” E o que se faz a
respeito? Acabar com a transmissão direta? “Agora é difícil”, respondeu
Fernando Henrique. “Se acabar, vão dizer que é antidemocrático.”
O professor Conrado Hübner Mendes, da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, que
termina o seu doutorado na Universidade de Edimburgo, na Escócia, não tem
dúvidas. “A superexposição na televisão não ajuda o Supremo a ser mais
transparente”, afirmou. “Tampouco ajuda a sociedade a entender melhor o papel
do Tribunal e da Constituição. Em geral, só tem atrapalhado: cria um palanque
para que ministros se tornem celebridades, em prejuízo do debate franco entre
eles.” Para Hübner Mendes, “é claro que transparência é indispensável em muitos
aspectos. Mas a inexistência de qualquer reunião privada entre os juízes tem efeitos
perniciosos também, tal como o enrijecimento do debate (ninguém gosta de
admitir que esteja errado em público) e a teatralidade. Há bastante pesquisa
sobre isso na ciência política, e a recomendação, em geral, é que se busque uma
forma híbrida, que combine momentos públicos e abertos com deliberações a
portas fechadas.”
Cabe ao Supremo zelar pela Constituição. Todas as ações e recursos que a
questionem de alguma maneira vão parar lá. A Constituição de 1988 aumentou o
número dessas ações e de seus potenciais proponentes. Antes, por exemplo, só a
Procuradoria Geral da República podia propor ações diretas de
inconstitucionalidade. Hoje, muitas entidades podem fazê-lo. A Constituição
também criou o mandado de injunção, pelo qual se pode apelar ao Supremo em
casos de normas* constitucionais que ainda não foram regulamentadas. Todos os
casos que dão entrada têm que chegar a uma decisão – ou monocrática (de um
ministro), ou colegiada (de turma ou de plenário). É diferente, por exemplo, da
Suprema Corte dos Estados Unidos, onde são os nove ministros que escolhem o que
vão julgar. Os casos, lá, não passam de algumas dezenas por ano.
O Supremo, em contrapartida, recebe uma torrente de processos, que invade e se
amontoa nos gabinetes. O recorde foi em 2006, quando tramitaram 127 mil. No ano
passado houve mais de 120 mil julgamentos. Arredondando as contas, foram 11 mil
julgamentos por ministro no ano. Ou 900 por mês, trinta por dia. Mais de três
por hora, considerando oito horas diárias de trabalho.
“São números obscenos”, disse Oscar
Vilhena Vieira, também ele professor de direito da Fundação Getulio Vargas
de São Paulo e autor de Supremo
Tribunal Federal: Jurisprudência Política, um dos poucos livros com uma
visão crítica da Corte Maior. “Se considerarmos que 90% das decisões do STF são
tomadas monocraticamente, de forma individual, o quadro fica ainda pior. O
Supremo é um colegiado justamente para reduzir os erros e impedir a ruptura da
regra da imparcialidade. Ao invés disso,
transformou-se de fato num órgão onde os juízes proferem, individualmente, uma
quantidade enorme de decisões todos os dias. Ou seja: a corte não é corte. O que nós temos hoje é uma somatória de
onze votos – que quase sempre já estão redigidos antes da discussão em plenário
–, e não uma decisão da corte, decorrente de um debate robusto entre os
ministros.”
Este ano, no primeiro semestre, quase 36 mil processos foram protocolados no
Supremo. A diminuição ocorreu por causa de novos mecanismos criados com a
reforma do Poder Judiciário, de 2004. Um dos mais importantes é a súmula
vinculante, que evita a tramitação de processos com reiteradas decisões iguais.
Um exemplo é a que declara inconstitucional qualquer lei que disponha sobre
sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias. Qualquer
processo que trate desse tema será resolvido com a simples aplicação da súmula.
Nas segundas e sextas-feiras não há julgamentos. Cada ministro, nisso como em
tudo, faz o que lhe aprouver. Alguns trabalham em casa – como quase todos dizem
que fazem –, outros vão aos gabinetes. O ministro também é responsável pela
gestão de seu gabinete – da decoração, que volta e meia muda, ao horário do
expediente. Os gabinetes são todos enormes – alguns chegam a 500 metros
quadrados – e neles trabalham, em média, trinta funcionários. Alguns são
abertos e arejados – como o de Marco Aurélio –, e outros cheios de salas, como
o de Celso de Mello. Há processos por todo o lado, identificados por pastas de
cores diferentes. Recursos extraordinários, nas amarelas. Agravos, azuis.
Criminais, laranja.
“Aqui chegam quarenta processos por dia, mas há não muito tempo chegavam 100”,
disse Marcos Paulo Meneses, assessor-chefe do gabinete de Marco Aurélio (que
tem 447 metros quadrados e vista panorâmica para o cerrado e o lago Paranoá, e
é tocado por quarenta funcionários). Menezes tem 29 anos e está há dez anos com
o ministro. Dribla com fluidez as pilhas de processos no carpete cinza, e sabe
em quais armários, inclusive os que ficam no 2º subsolo do anexo 2, estão os
milhares de outros. Eram 13 mil no começo do ano passado. Diminuíram para 8 500
no meio deste ano.
Os processos passam, para usar a linguagem de Meneses, por três níveis de
produção. Primeiro, são separados por classe (como agravos, recursos
extraordinários e ações originárias) e por matéria (tributária, servidor
público, trabalhista, previdenciária, criminal). Depois, vão para os analistas,
a quem cabe dizer se cumprem as formalidades da lei. Se cumprirem, verifica-se
se o ministro já tomou decisão num processo semelhante. Se sim, como acontece
em grande parte dos casos, eles a reproduzem tal e qual. Se não, vão para um
dos cinco assessores jurídicos. Eles analisam o processo e preparam um resumo
de três folhas, sem citações. Na maioria dos casos, é apenas esse resumo que o
ministro lerá – e é com base nele que tomará sua decisão. Ocorre de o ministro
pedir as peças que quiser, ou até o processo inteiro. Mas é raro.
O bacharel João Bosco é um outro assessor de Marco Aurélio. Na mesa atulhada de
processos ele comenta que um dos graves problemas para administrar aquelas
pilhas todas é a deficiência técnica de muitos advogados. “Cerca de 80% dos habeas
corpus são mal instruídos pelos advogados”, disse Bosco. “Muitos não trazem
sequer cópia do ato que pretendem derrubar – e tudo isso gera atraso.” O
assessor tem uma boa memória sobre os casos absurdos que chegaram ao Supremo.
Um deles – o hc 74103, do Rio de Janeiro – talvez seja o campeão mundial do
gênero. Um cidadão idoso, afirmando ter lido no jornal que o então presidente
Fernando Henrique Cardoso teria mandado um ofício a todos os aposentados com
mais de 65 anos, convidando-os a se apresentarem para a incineração, pedia
garantias ao Supremo. Relatado pelo ministro Neri da Silveira, o processo
tramitou durante três meses. E foi a julgamento em agosto de 1996.
Os julgamentos do Supremo ocorrem na sessão plenária, nas tardes das quartas e
quintas-feiras, e nas sessões das turmas, nas tardes das terças. São duas
turmas – a Primeira e a Segunda, no jargão interno –, com cinco ministros cada
uma. A Primeira, presidida por Ricardo Lewandowski, não aceita julgar processos
em lista, sistema que agrupa dezenas ou até centenas de casos semelhantes e
decide todos de uma tacada só. “Não somos batedores de carimbo”, disse o
ministro Marco Aurélio para explicar sua contrariedade às listas. A Segunda
Turma, presidida por Eros Grau, julga sequências de listas, uma atrás da outra.
O presidente apenas lê os números dos processos, aprova por unanimidade em
segundos e proclama o resultado. “É uma forma de aliviar a carga pesada”, disse
o ministro Joaquim Barbosa, que era contra as listas, mas acabou capitulando.
Os julgamentos das turmas não são transmitidos pela tv Justiça. Mas o serão, em
breve, assim como as sessões do Conselho Nacional de Justiça, se depender do
presidente Cezar Peluso. Os da plenária têm transmissão direta. Os primeiros
que aparecem, antes de começar as sessões de julgamento, são os “capinhas”,
assim chamados por causa da obrigatória capa preta, curta, sobre os ombros.
Os ministros também são obrigados a usar toga. É uma capa de cetim preto,
comprida, sobre a roupa. A simples, que usam no dia a dia, é sobreposta e
amarrada nas costas por duas fitas. A toga de gala, usada em cerimônias
solenes, tem que ser vestida pela cabeça. Ela tem um camisão cheio de babados,
na frente, e a cintura é cingida por uma faixa de seda. O Supremo as compra,
cinco por ano, de poucas confecções. A de gala custa
370 reais; a simples, 197. As togas ficam sob a responsabilidade dos
respectivos gabinetes. Na prática, com os capinhas. Cabe a eles, nos dias de
sessões, tirá-las dos armários, estendê-las sobre uma mesa de jacarandá, no
salão branco, adjacente ao plenário, e colocá-las nos ministros.
Gilmar Mendes não tem paciência de esperar a amarração. Seu capinha tem que
fazê-lo enquanto ele sai andando. A ministra Ellen Gracie proibiu seu capinha
de estender a toga na mesa de jacarandá. Acha que traz maus fluidos, porque é
no móvel que são velados os ministros defuntos, que recebem as últimas honras
da casa no salão branco.
As duas ministras tentam harmonizar as roupas com o negrume das togas. Às
vezes, a combinação é audaz, como no dia em que a ministra Cármen Lúcia
adentrou o plenário com um terninho rosa-choque. A ministra Ellen não se furta
a mostrar, além do perfil olímpico e do perfume sempre generoso, a pele ebúrnea
dos braços à mostra.
E ambas sempre indagam dos capinhas se, comme il faut, o bico dos
sapatos está aparecendo sob a toga. As duas ministras não conseguiram quebrar a
hegemonia masculina dos auxiliares de plenário: só há capinhas homens.
É um cargo de confiança. Eles servem para tudo: puxar a poltrona quando as
excelências vão sentar ou levantar, arrumar livros e processos que devem estar
à mão, servir água, café ou chá, levar recados ou bilhetes, resolver encrencas
com computadores, documentos que faltaram e que tais. Há os que já puxaram a
cadeira demais (uma vez o ministro Grau foi ao chão), que já derramaram água ou
café (Grau, idem) e que já entregaram ao ministro o relatório do processo
errado (Toffoli, que só descobriu ao ser advertido pelo advogado do caso). Mas,
vendo-se a faina antes das sessões, pode-se dizer que um bom capinha é meio
ministro. Sem contar que eles sabem tudo o que se passa na casa, e mais alguma
coisa.
Mesmo que tudo esteja pronto para os ministros entrarem na hora, e sempre está,
as duas turmas começam as sessões com atraso. E não vão a muito mais de três
horas de duração. A Primeira ainda volta depois do intervalo. A Segunda, nem
isso. A Primeira é mais agradável de ser assistida, pela implicância e picardia
do ministro Marco Aurélio. É comum que ele fique em posição vencida – como faz
questão de alardear – e que questione os que dele divergem de maneira
provocativa. Puxa conversa com a ministra Cármen Lúcia, que senta ao seu lado.
Ela responde de modo gentil, mas formal. Do outro lado ficam Ayres Britto e
Dias Toffoli, que é quase tão silencioso quanto a ministra. Fala o estritamente
necessário. Há momentos ternos na Primeira Turma: “Nunca me abespinho com Vossa
Excelência, sendo Vossa Excelência uma flor”, disse certa vez Cármen Lúcia a
Ayres Britto.
A Segunda Turma é mais sisuda, e raramente sai dos autos. Tirante grunhidos e
resmungos do ministro Eros Grau, resta a formalidade de Celso de Mello e o mutismo
de Ellen Gracie, Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes (que anda caladíssimo depois
que saiu da presidência).
As plenárias de quartas e quintas são o horário nobre do Supremo. Realizadas no
auditório do prédio principal, no salão de mármore com o relevo construtivista
de Athos Bulcão, também começam com grande atraso. Os advogados se queixam
muito – a maioria vem de outros estados – mas nenhum ainda teve coragem de
reclamar com os juízes.
À entrada dos ministros, e também do procurador-geral da República, Roberto
Gurgel, numa fila puxada pelo presidente, todos se levantam. Se alguém
esquecer, ou não estiver prestando atenção, os seguranças lembram. Eles são
pelo menos uma dúzia e acordam ostensivamente quem cochila – menos os
ministros, é claro. Às vésperas de deixar a presidência, esgotado pela ciranda
das despedidas, Gilmar Mendes cochilou em vários momentos durante uma sessão
plenária, acordando assustado. “Você viu como eu não estava aguentando?”,
perguntou, depois.
Os seguranças também admoestam os donos de celulares que tocam e os fotógrafos
que se aproximam dos juízes ou fazem barulho. Mas às vezes, como ocorreu numa
sessão de março, deixam que um maluco suba na tribuna dos advogados para
ameaçar os ministros. A sessão foi suspensa, cinco policiais expulsaram o
cidadão que, já fora do STF, gritava: “Aí só tem ladrão, aí só tem ladrão.”
O problema é que a tribuna fica entre os juízes e o público. Mas como as
instalações são tombadas, o Patrimônio Histórico não permite modificações.
“Vamos ter que resolver isso, antes que aconteça alguma coisa pior”, disse o
presidente Cezar Peluso. Ele trocou o chefe da segurança e mandou restringir a
circulação em algumas áreas do prédio, como o andar da presidência.
Quem escolhe o que vai a julgamento nas plenárias
é, exclusivamente, o presidente. A sessão começa com a leitura da ata da sessão
anterior, para a qual, cumprindo a praxe, nenhum deles dá a mínima. O
presidente, então, anuncia o processo a ser julgado e passa a palavra para o
relator. Este expõe o caso, lendo um relatório que já trouxe pronto. Poucos
ministros sabem combinar a leitura com comentários e acréscimos improvisados.
Se houver sustentação oral, os advogados sobem na tribuna depois que o relator
acabou. Eles têm no máximo quinze minutos para falar. Se o Ministério Público
quiser se manifestar, a hora é essa. Roberto Gurgel é talvez o mais silencioso
procurador que ali já pisou: manifesta-se quando é estritamente necessário e
evita apartes. Depois que as partes se manifestaram, a palavra volta para o
relator, que então, em nova leitura, expõe o seu voto.
Um acompanhamento regular das sessões durante um trimestre, mostrou, data
maxima venia, que o Supremo tem quatro ministros capazes de discutir uma
questão com profundidade e desenvoltura, sem se aterem à leitura de papéis ou
de tela de computador: Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Cezar
Peluso. Os demais, em maior ou menor grau, dependem do papel.
É o caso das duas ministras. Ellen Gracie porque lhe é do estilo. Cármen Lúcia,
não se sabe. Quem já a viu fazendo palestras sabe que é capaz de fazer uma
plateia rir por comentários como “essa reforma administrativa fala em membro
inativo, e eu odeio membro inativo”. Gilmar Mendes, que gosta dela e a chama de
Carminha, acha que a ministra ainda não se recuperou da troca de e-mails com
Lewandowski. Numa sessão, eles trocavam mensagens sobre questões internas da
corte – deixando mal o ministro Eros Grau – quando o fotógrafo Roberto Stuckert
Filho, de
O Globo, clicou a tela e o jornal publicou no dia seguinte. “O
Lewandowski deu a volta por cima, mas ela ainda não conseguiu”, disse Mendes.
Embora seja dos mais formais – chama os colegas de “eminentes pares”–
Lewandowski raramente sai do script. Questionado, atrapalha-se. Joaquim Barbosa
soma com os mudos. Não se mete em questões polêmicas de jeito nenhum. Já suou
quando o ministro Marco Aurélio, sempre ele, em golpes sequenciais, o colocou
nas cordas com uma pergunta que não soube responder a respeito do processo que
relatava naquele momento. É menos absurdo do que possa parecer. O acúmulo de
processos leva a que, muitas vezes, ministros só tomem conhecimento do que se
trata na hora da sessão, quando leem o que escreveram os assessores.
Joaquim Barbosa explicou que está sempre num senta-levanta devido a dores na
coluna. Retira-se várias vezes durante a sessão e vai para a sua cama
ortopédica na sala de lanches do salão branco. Ayres Britto fala fora do papel,
mas na maioria das vezes para contribuições poéticas que desanuviam o ambiente.
O silêncio de Toffoli rescende à prudência de quem ainda não conhece direito a
celebração da missa. E o de Eros, às vezes, sinaliza que seus pensamentos estão
em outro continente.
No intervalo – do qual sempre voltam muito atrasados – os ministros saboreiam
um lanche não tão farto quanto já o foi, objeto até de denúncia. Ele é servido
por garçons num canto, protegido por biombo, do salão branco.
“A sessão de julgamento do Supremo é geralmente uma farsa, um teatro
contraproducente”, opinou o professor Hübner Mendes. “Todos chegam com seus
votos prontos e gastam horas apenas para lê-los em público. Eventualmente, até
há alguma interação entre eles, uma pergunta, uma rápida discussão, mas quase
sempre superficial, que nunca muda o voto de ninguém.”
Para o professor Hübner Mendes, há um “ambiente de academia de letras” no
Supremo, marcado pelo pedantismo e a prolixidade: “Existe um apego à beleza
literária e, sobretudo, à erudição dos votos, e pouca atenção à especificidade
dos fatos de cada caso. Não são raros os votos que fazem longos resumos de
certos temas na história do pensamento, como liberdade de expressão, separação
de poderes etc. O problema não é somente a péssima qualidade do resumo, versões
baratas de almanaque, mas sim que isso apenas desvia a atenção para a boa
resolução do caso sobre a mesa. Os juízes têm que ser solucionadores de
problemas e fornecedores de boas justificativas. Suas pretensões como
escritores e intelectuais não deveriam ser relevantes.”
Em cortes superiores europeias, e também nos Estados Unidos, advogados não
podem falar com ministros. A lei proíbe. No Brasil, o direito é constitucional.
A Ordem dos Advogados bate-se por ele, mas sabe que é uma questão polêmica
desde que o ministro Joaquim Barbosa a questionou. Barbosa não é completamente
contra receber os causídicos. Tanto que os recebe: foram 35 no ano passado e
dez este ano, até sair de licença – quantidade que outros ministros recebem em
um mês, ou até em uma semana. É contra, sim, recebê-los sem a notificação da
parte contrária, para que ela possa, querendo, comparecer. Outros ministros são
simpáticos a restrições.
No ano passado, quando o assunto veio à baila, sete deles assinaram uma
proposta de mudança de regimento nesse sentido. Como o barulho foi grande, e
como há ministros fortemente contrários às restrições – Marco Aurélio, por
exemplo – a questão está em banho-maria. Deve retornar à pauta durante a
presidência de Peluso, que é contra receber advogados. “Não há nada que um
advogado não possa dizer nos autos, e é assim que deve ser”, disse ele.
Explicou que ainda os recebe, “porque a questão não foi resolvida e haveria uma
grita se eu não o fizesse”, mas acha que deve ser enfrentada. “Em nenhum lugar
do mundo existe isso, só no Brasil. Nos Estados Unidos é como se eles não tivessem
nem telefone, ninguém sequer liga.”
Lewandowski é o único a receber os advogados, regularmente, nos intervalos das
sessões da Primeira Turma. Eles informam ao capinha do ministro que desejam
falar com ele. O capinha leva o ministro até eles, um por vez, e se afasta um
pouco. O ministro troca palavras formais, olha nos olhos, recebe os memoriais
que são entregues e diz que vai olhar tudo com atenção. Às vezes, coincide de
um desses advogados ser o deputado federal José Eduardo Cardozo, da direção do
PT e da campanha de Dilma Rousseff. Lewandowski também é o presidente do
Tribunal Superior Eleitoral. Naqueles dias, esse tribunal havia multado o
presidente Lula por propaganda indevida. Cardozo foi recebido cordialmente, e
levado para um das poltronas da plateia, onde se sentaram.
Outro advogado que frequenta o Supremo é José Roberto Batochio. Alguns de seus
casos são famosos, como o processo em que defendeu o ex-ministro da Fazenda
Antonio Palocci, denunciado pela quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo
dos Santos Costa. O advogado ganhou e o ex-ministro lhe pagou de honorários, em
cinco vezes, 500 mil reais (praticamente uma gorjeta para os padrões do
mercado).
“Se existe uma instância digna de confiança e isenta de vícios que acometem a
ordem pública no Brasil, esta é o Supremo Tribunal Federal”, disse Batochio.
Quando Carlos Velloso ainda era do STF, coube-lhe relatar um habeas corpus
em que Batochio pedia a liberdade de Flávio Maluf, que estava preso com o pai,
Paulo Maluf. Velloso concedeu o habeas corpus a ambos. No final da
sessão, Batochio foi cumprimentar o ministro e um fotógrafo captou a
efusividade do encontro, estampado, no dia seguinte, na maioria dos jornais.
“Fizeram muita maldade com aquilo e não houve absolutamente nada”, disse o advogado.
“Foi apenas um abraço caloroso”, explicou Carlos Velloso.
Outro advogado que atua no Supremo é José Luis de Oliveira Lima, Juca para os
amigos. Ele é o patrono do maior e mais famoso processo que tramita na casa – o
do mensalão, relatado pelo ministro Joaquim Barbosa, no qual defende o
ex-ministro José Dirceu. No final do ano, na véspera do Natal, em parceria com
Márcio Thomaz Bastos, Oliveira Lima conseguiu do ministro Gilmar Mendes uma
liminar que tirou da cadeia um dos seus clientes mais conhecidos, o médico
Roger Abdelmassih, denunciado por crimes sexuais contra pacientes.
Quatro meses depois, numa segunda-feira de maio, Oliveira Lima homenageou o
ministro Gilmar Mendes com um jantar em seu apartamento. “É o mínimo que ele
merece, pela gestão revolucionária que fez no Supremo”, explicou Oliveira Lima.
Convidou trinta criminalistas, entre os mais prestigiados de São Paulo. Gilmar
Mendes foi com a esposa, Guiomar, que discursou. Márcio Thomaz Bastos foi um
dos primeiros a se retirar. “Não vejo nenhum conflito ético em comparecer a
esse jantar”, me disse Gilmar Mendes. “Nem eu”, afirmou o anfitrião.
Poucos comem peixe assado como o ministro Marco Aurélio. Vai na mão mesmo, não
importa o tamanho ou a quantidade de espinhas. O carapeba veio do Maranhão,
terra natal da cozinheira. “Uma delícia”, disse o ministro, literalmente
lambendo os beiços, na mesa na copa. Ele mora, com a esposa desembargadora e um
de seus quatro filhos, fora os empregados, numa casa à beira do Lago Sul. A
garagem guarda seus veículos de estimação: um Fusca 69, um Alfa Romeu 98 e,
menina dos olhos, uma moto Kawasaki 97, com a qual já foi ao Supremo.
É uma segunda-feira, dia em que trabalha em casa. É preciso contornar, no chão,
as pilhas de processos que atulham o escritório desarrumado. Eles também estão
nas poltronas, na estante e espalhados pela mesa. “Aqui tem uns 100 processos”,
ele estima. No gabinete do Supremo há outros, uns 8 mil.
O ministro trabalha falando. Dita suas decisões, solitário, para um gravador
pequeno. As fitas são enroladas num papel e presas com clipes. Se há urgência,
um motorista as leva para o Supremo. “É lá que fica a mulher que mais me ouve”,
brinca o ministro. É a servidora Cláudia Borges, que degrava as fitas para o
papel, por meio de um ditafone. Ele tem um pedal que controla a velocidade da
voz, facilitando a transcrição. O ministro mandou comprá-lo no exterior.
Cláudia comanda quatro funcionários. A equipe é robusta porque o juiz dita a
valer, e tem um modo de falar peculiar: parece que sempre lhe falta fôlego, e
ele acentua o final das palavras que terminam com “al”.
Marco Aurélio estava chateado com uma pesquisa divulgada na imprensa sobre a
lentidão do STF, na qual ele não figurava entre os mais rápidos. “A batalha
para combinar conteúdo e celeridade é inglória”, disse. “Eu não entro na
competição de quantidade, e não aceito que juízes auxiliares julguem os meus
casos. Acho que o ofício de julgar é indelegável, porque não basta a formação
técnica. A formação humanística é mais importante.”
Juízes auxiliares foram introduzidos no Supremo Tribunal Federal, por maioria
de votos, numa reunião administrativa, durante a presidência de Nelson Jobim.
Achou-se que eles ajudariam a dar conta das montanhas de processos – quase 10
mil por ministro, vale lembrar. O regimento passou a estipular que um ministro
tem direito a um juiz auxiliar, em cargo de confiança, que requisita de outros
tribunais, a seu exclusivo critério. Nove ministros têm juiz auxiliar. Marco
Aurélio e Celso de Mello, que são contrários, nunca indicaram os seus. Essa
sobra, por assim dizer, foi reivindicada por Ellen Gracie, que queria ficar com
três só para ela. Numa sessão administrativa, seu pedido foi posto em votação e
recusado.
Marco Aurélio tem 31 anos de magistratura. “O dia que eu perder o entusiasmo,
requeiro a aposentadoria”, disse. “Não me imagino saindo do Supremo, aos 70,
para advogar. Talvez a área acadêmica, na fmu. Uma reitoria, quem sabe. De
tédio eu não morrerei.” Ele tem relações profissionais e de amizade com o dono
das Faculdades Metropolitanas Unidas, de São Paulo, Edevaldo Alves da Silva.
Chama-o de “meu irmão”.
Depois de degustar a carapeba, o ministro relembrou um dos muitos embates que
teve na corte: “Era uma discussão em que o governo tinha interesse. O Nelson Jobim
me imprensou, com aquele jeito de gaúcho trepidante. Aparteou três vezes. Na
terceira, virei-me para o Celso de Mello e disse: ‘Confesso que eu não tenho
medo de polícia governamental.’ O Jobim reagiu: ‘Repilo, repilo!’”
Não há ministro que não tenha tido arrufos com Marco Aurélio. Já se pegou
algumas vezes com Joaquim Barbosa – numa delas o chamou para um duelo. Já fez o
ministro Eros Grau ter um preocupante aumento de pressão. Não dá trégua à
ministra Ellen Gracie quando acha que ela está errada, e sempre parece achar
isso. Marco Aurélio gosta e repete até nas sessões de julgamento, o apelido que
lhe foi dado por Nelson Jobim: ferrinho de dentista. Não provoca só juízes.
Certa vez ele encontrou, no elevador privativo dos ministros, um jornalista que
não deveria estar lá. “E então, ministro, quais são as novidades?”, perguntou o
repórter. “A novidade é essa nossa intimidade”, respondeu-lhe Marco Aurélio, na
bucha.
No seu gabinete, um cróton enorme, de folhagem exuberante, que já vai para uns
trinta anos de vida, chama a atenção. É o começo de uma noite de quinta-feira.
Não houve a costumeira sessão plenária da tarde, por falta de quorum.
“Esse cróton é o meu amuleto”, comenta o ministro Marco Aurélio. “Aonde eu vou,
ele vai atrás.” Só de Supremo a planta tem vinte anos, contados de junho de
1990, quando ele chegou lá, indicado pelo primo presidente da República,
Fernando Collor de Mello. “Eu não sou primo dele”, disse uma vez no programa Roda
Viva, deixando em dúvida, por alguns segundos, o jornalista que lembrara o
parentesco. “Ele é que é meu primo, porque nasceu depois”, emendou. Ri do
gracejo até hoje, achando que foi uma grande tirada.
O viço do cróton contrasta com a tensão do ministro. Ele já foi três vezes ao
banheiro do gabinete para, conforme disse, “aumentar a autonomia”. “Uma vez o
Peluso me disse que essa era a melhor expressão que ele ouvira para fazer
xixi”, disse. Em boa parte das histórias contadas por Marco Aurélio aparece
alguém lhe fazendo um elogio. Se não aparecer, ele próprio não se furta, com
verve e prazer. O assunto que o deixa apreensivo é um segredo do Supremo
Tribunal Federal: em 2001, quando era o presidente da corte, três ministros
pelejaram para levá-lo ao impeachment, no Senado, única instância que pode
afastar um ministro do Supremo Tribunal Federal.
A ameaça de destituição ocorreu porque Marco Aurélio alterou o conteúdo de
uma decisão colegiada. Era um pedido de habeas corpus para um oficial da
Aeronáutica flagrado, com outros colegas, com 33 quilos de cocaína no momento da
decolagem de um avião da Força Aérea Brasileira, no Recife. Como relator do
caso, Marco Aurélio levou o habeas corpus a julgamento da Segunda Turma.
Votou pela concessão, obtendo a unanimidade dos dois ministros presentes, o
presidente da Turma, Néri da Silveira, e Nelson Jobim. Celso de Mello e
Maurício Corrêa, que completavam a Segunda Turma, estavam ausentes.
Cabia a Marco Aurélio a redação do acórdão, nos termos votados. Quais sejam:
considerar ilegal a prisão preventiva, por excesso de prazo, assegurando ao
acusado o direito de aguardar o julgamento em liberdade. Uma decisão a mais,
como milhares de outras.
Só que Marco Aurélio acrescentou no acórdão uma expressão não formulada no
julgamento: “Torno definitiva a liminar, para que o paciente aguarde em
liberdade o julgamento dos citados processos e, na hipótese de condenação, a
imutabilidade do ato processual formalizado.” Em outros termos: ele dizia que o
réu deveria ficar em liberdade mesmo em caso de condenação.
Veio a condenação, a 17 anos de reclusão, e o juiz federal mandou prender o
réu. O advogado do condenado recorreu novamente ao Supremo, pedindo outro habeas
corpus. Arguiu, justamente, que a frase final do acórdão deveria garantir a
liberdade de seu cliente. Ao reassumir o caso, Marco Aurélio deu a liminar,
reafirmando o acórdão da Segunda Turma, inclusive em sua parte final.
O habeas corpus foi para o tribunal pleno em 12 de setembro de 2001,
agora com Marco Aurélio na presidência do Supremo. A transcrição dos debates
mostra que Nelson Jobim questiona o teor de decisão da Segunda Turma – e acusa
Marco Aurélio de ter acrescentado, no acórdão, uma tese em que fora vencido.
“Não gosto é que se traspassem, por dentro de uma decisão, situações vencidas
na turma”, disse Jobim ao plenário.
Marco Aurélio respondeu que não havia contrabando algum, e que a Segunda Turma,
inclusive Jobim, decidira tal e qual ele relatara no acórdão. Diante da dúvida,
e do impasse, a ministra Ellen Gracie pediu vista dos autos. Duas semanas
depois, após examinar o que acontecera na reunião da Segunda Turma, a ministra
afirmou que “houve uma particularidade no julgamento”, a de, “por lapso no voto
condutor” (o de Marco Aurélio), ter-se acrescentado que, na hipótese de
condenação, o habeas corpus permanecesse em vigor. Escreveu Ellen
Gracie: “Não está inserido em qualquer dos dispositivos constitucionais que o
Supremo Tribunal Federal tenha poderes para ditar as decisões futuras do
magistrado de primeiro grau, impondo-lhe que deixe de aplicar a letra expressa
da lei.”
Marco Aurélio não admitiu o “lapso”. Explicou o trecho final do acórdão como
coerente com a sua posição liberal naquela matéria. A ministra, que havia sido
elegante, deixou de ser: “Gostaria de esclarecer, e por isso mencionei que
possivelmente fosse uma falha, que retornei ao julgamento da Turma, inclusive
revisando notas taquigráficas do julgamento, e a questão não foi levada por
Vossa Excelência. A Turma não deliberou a respeito dessa intenção.”
Marco Aurélio insistiu: “Perdão. A minha fidelidade é absoluta.” Mas Jobim
reforçou a ministra e, novamente, pediu vista. Só um mês depois, em 25 de
outubro, Marco Aurélio admitiu a “discrepância” apontada pela ministra Ellen
Gracie, reconsiderou o voto e reconheceu que o seu acréscimo ao acórdão não
fora deliberado na votação da Turma.
“Foi um erro perfeitamente cabível diante do nosso acúmulo de processos, mas
nunca um motivo para quererem o meu impeachment e me levar ao Senado”, disse
Marco Aurélio em seu gabinete, olhando para o cróton. Os três ministros a quem
acusa de querer destruí-lo – o verbo é dele – são Nelson Jobim, hoje ministro
da Defesa, Carlos Velloso, que voltou a advogar, e Ellen Gracie, ainda ministra
da casa.
“O caso era gravíssimo”, disse Jobim em seu gabinete ministerial. “Fui eu que
salvei o Marco Aurélio, para preservar a instituição.” No escritório do filho
advogado, onde dá expediente, Carlos Velloso usou o mesmo superlativo e o mesmo
argumento: “Recuamos do caso gravíssimo pela honra da corte.” A ministra Ellen
Gracie não quis dar entrevista.
Nas sessões plenárias das quartas e quintas-feiras, ela se senta na bancada
oposta à de Marco Aurélio, de frente para ele. Comentei com o ministro ter
sentido, em meia dúzia de sessões em que estiveram face a face, um ódio quase
palpável entre ambos. “Você tem percepção”, ele disse. “Como é que posso gostar
de uma pessoa que queria o meu fim?”, perguntou, apontando a papelada sobre o
caso, trazida, a seu pedido, pelo chefe de sua assessoria.
Jobim, Ellen Gracie e Carlos Velloso – o presidente que Marco Aurélio
substituíra, desfazendo muito do que ele fizera – quiseram levar o reconhecido
erro de Marco Aurélio para discussão em uma sessão administrativa, na qual o
voto da maioria por um pedido de impeachment poderia mandá-lo ao Senado. “Eu vi
a conspiração crescendo”, disse Marco Aurélio. “Eles queriam me intimidar ou
retaliar, mas decidi agir.”
Num gesto incomum, ele procurou o ministro Sepúlveda Pertence em sua própria
casa, e depois, nos respectivos gabinetes, os ministros Moreira Alves, Néri da
Silveira e Sydney Sanches. “Eu reconheci que era chato, insuportável, ferrinho
de dentista, o que eles quisessem, mas jamais, como estava se insinuando,
desonesto ou desleal”, disse Marco Aurélio acentuando a tal ponto a última
sílaba de desleal a ponto de a palavra soar como desleár.
“Defendi-me, como pude, situando o erro em seus aspectos formais. Era um
acréscimo, realmente, mas refletia uma posição minha, de ser liberal nesses
casos para garantir o mais amplo direito de defesa. Se foi parar no acórdão,
foi por acidente.”
Percebendo que esses ministros que procurara não adeririam à proposta de
impeachment, Marco Aurélio aguardou a próxima reunião administrativa. Mal ela
começou, dirigiu-se ao ministro Velloso, para ele o cérebro da “conspiração”.
Marco Aurélio lhe disse: “Então, Carlos, porque você está fazendo isso,
querendo me levar ao Senado? Por que você quer me destruir? O que foi que eu
lhe fiz?” Velloso não o enfrentou. Jobim e Ellen deixaram por menos. Ficou tudo
como antes. Pouquíssima gente soube da história fora do Supremo. “Eu entrei no
Supremo depois, mas fui informado”, disse Gilmar Mendes. “Achei grave o que
Marco Aurélio fez, e achei mais grave ainda terem botado panos quentes.”
O s ministros dispõem de infraestrutura, remuneração e mordomias excelentes.
O orçamento do Supremo para este ano é de 510 milhões de reais. Trabalham lá,
no prédio principal e nos dois anexos, 1 135 servidores concursados, 1 250
terceirizados e 176 estagiários. A frota tem 70 veículos, que gastam 35 mil de
combustível e rodam cerca de 13 mil quilômetros por mês. Dezenove deles – os
Ômegas de luxo – são para os onze ministros. O presidente tem sempre dois
carros à disposição, fora os da segurança. Todos os juízes dispõem de
segurança, inclusive nas residências, por 24 horas. Têm direito a apartamento
funcional – dos grandes – ou a auxílio-moradia, no limite de 2 750 reais. Se
viajarem pelo Brasil, a diária é de 614 reais. Para o exterior, são 485
dólares.
O salário de um ministro é de 26 mil reais. O presidente recebe uma
gratificação adicional de 1 700 reais. E os que atuam cumulativamente no
Tribunal Superior Eleitoral recebem jeton de 3 mil. Continuam recebendo
depois que se aposentam, e também depois que morrem, por seus dependentes. É a
vitaliciedade, à qual a Constituição agrega a inamovibilidade e a
irredutibilidade de vencimentos. Podem nomear nove cargos de confiança no
gabinete, com salários que variam entre 8 mil e 12 mil reais, fora o juiz
auxiliar.
O almoxarifado do Supremo fica num prédio emprestado, na Asa Norte. Do papel
higiênico ao café, 3 mil itens estão catalogados lá. Em maio, havia 1,4 milhão
de produtos em estoque, no valor de 2,5 milhões de reais. O consumo de papel
sulfite é de 1 800 resmas por mês. De papel higiênico vão, mensalmente, para
145 banheiros, 700 rolos de 250 metros cada um. Ao informar esse último dado, o
coordenador de material e patrimônio, Edmilson Lima, pediu que não se fizesse
nenhum comentário. De café, são 680 quilos por mês. E aí não está incluído o
melindre do ministro Peluso – que traz o seu próprio pó de casa, assim como o
bule e as xícaras.
Estão previstos, para este ano,
investimentos de 61 milhões de reais. A maior parte é para compra de
equipamentos de informática e de televisão, e 14 milhões para modernização e
reparo. Esbelto por fora, o prédio de Oscar Niemeyer, com seus 64 mil metros
quadrados de área construída, é um poço sem-fim de problemas. Mesmo muito já
tendo sido feito e gasto para consertar deficiências estruturais, várias ainda
persistem: lajes infiltradas, estruturas comprometidas, condutos elétricos e
hidráulicos pedindo socorro, acústica cava no plenário, elevadores à beira do
colapso. Só de vidros, há quase 14 mil metros quadrados, e parte da estrutura
que os sustenta precisa ser trocada.
Os desalinhamentos têm provocado episódios prontos para um Edgar Allan Poe. É o
caso da mítica ninhada de gatos que habitaria túneis entre as paredes, e cujos
miados assustam funcionários. Como se não bastassem os gatos – se é que são, ou
eram, gatos – a área da Rádio Justiça sofreu há pouco uma inundação. No ano
passado, as obras de engenharia custaram 4 milhões de reais.
O responsável pela administração do Supremo é o diretor-geral Alcides Diniz.
Entrou na presidência de Gilmar Mendes e, caso raro, foi mantido na gestão
Peluso, com a obrigatória aprovação do plenário. Mineiro (de Vazante) no que
isso tem de bom (o laconismo) e de ruim (o laconismo), foi criado na roça, onde
pegou no cabo da enxada, e mudou-se para Brasília aos 16 anos. Foi contínuo e
passou num concurso para a Justiça Federal como datilógrafo. Com dois cursos
superiores – economia e administração de empresas – subiu de posto e de
responsabilidade no Conselho da Justiça Federal, onde trabalhou 26 anos. Em
1997, a política o atraiu. Foi eleito prefeito de Vazante, pelo pfl. Perdida a
reeleição, voltou à carreira, até chegar a diretor-geral do Superior Tribunal
de Justiça. Foi ali que Gilmar Mendes, mal o conhecendo, o levou para o
Supremo. “Procuro fazer uma gestão impessoal e estritamente técnica”, disse
Diniz.
“O Supremo é um ninho de vaidades e
de pouca lealdade”, disse o ministro Eros Grau em seu gabinete. “Alguns são
terrivelmente inseguros e precisam se afirmar”, complementou, passando a mão
nos suspensórios azuis. Era o começo da noite de uma terça-feira. Horas
antes, ele havia sido eleito presidente da Segunda Turma, em substituição ao
ministro Cezar Peluso, que assumira a presidência do Tribunal.
“Entendo, com grande alegria e extrema honra, que a presidência cabe ao
ministro Eros Grau”, disse Celso de Mello na abertura da sessão de eleição,
expondo o combinado. O novo presidente disse que a generosidade do proponente
confirmava “a ideia do direito como um registro do cérebro e do coração”, e
assumiu os trabalhos. Em quase duas horas de sessão, com a presença de apenas
três ministros e um público de menos de dez pessoas (incluindo seguranças,
bombeiros e jornalistas) foram julgados sete habeas corpus. Um
deles tratava de um furto de duas canaletas plásticas cujo valor não chegava a
30 reais.
Pouco antes das cinco, antes que se completassem duas horas, a sessão foi
encerrada. Houve gente que pensou que seria um intervalo – como acontece na
Primeira Turma – mas era realmente o fim do expediente. Eros Grau e sua
inseparável bengala subiram para o gabinete. “Eu ia realmente processar o
Lewandowski”, foi a primeira frase que disse depois do comentário sobre vaidades
e deslealdades.
Referia-se ao caso da troca de e-mails, em agosto de 2007, durante uma sessão
do pleno, entre os ministros Cármen Lúcia e Lewandowski. Era a primeira sessão
de julgamento do mensalão. A foto da tela do computador publicada na imprensa
mostrava que os dois ministros chamavam Eros Grau de “Cupido”. Isto por que
Grau estaria patrocinando a indicação do advogado Menezes Direito para o
Supremo – e se o governo nomeasse seu amigo, Grau votaria pelo arquivamento da
denúncia do mensalão. “Procurei o José Gerardo Grossi e pedi que ele abrisse um
processo, mas ele achou melhor pedir que o Lewandowski me mandasse uma carta de
desculpas”, contou Grau. “Ele mandou a carta, mas era muito chocha, não falava
nada. Só que eu dei uma entrevista dizendo que ele se desculpara cabalmente, de
forma nobre e gentil. Como ele ficou calado, dei o caso por encerrado.” Grau
detesta Lewandowski até hoje. Com a ministra Cármen Lúcia, que se senta ao lado
dele no plenário, o mal-estar parece encerrado.
Eros Roberto Grau foi o quarto ministro indicado por Lula. Um advogado amigo do
presidente, Sigmaringa Seixas, acha que ele foi o único que saiu da cota
pessoal do próprio Lula, sem precisar de outros cacifes. “O presidente gosta
muito dele”, disse Seixas.
Professor de direito – inclusive de universidades francesas, como visitante – e
autor renomado de pareceres caríssimos, Grau teve uma passagem pelo Partido
Comunista Brasileiro durante a ditadura. Foi preso e torturado, mas não gosta
de falar sobre o assunto. Adora a França, onde tem dois apartamentos – um em
Paris e outro em Honfleur, na costa normanda. “São pequenos”, esclareceu, “e
não estou comprando um terceiro.” Vai com tanta frequência que alguns amigos o
chamam de “Eurograu”. É figura querida pelos garçons do Café de Flore, no boulevard
Saint-Germain. Está escrevendo um livro sobre sua fascinação por Paris, com
destaque para a área gastronômica, que aprecia e pratica.
Ele também recebe em Tiradentes, a cidade histórica mineira, onde tem um
casarão. Alguns dos jantares que oferece têm o cardápio enviado previamente aos
amigos. O ministro tem um filho advogado, Werner Grau, que trabalha em um dos
maiores escritórios de São Paulo, o Pinheiro Neto. Declara-se impedido, como
manda a lei, quando ele assina a petição. Sua data-limite no Supremo é agora,
em 19 de agosto, quando completa 70 anos.
Quando Gilmar Mendes era presidente,
Grau certa vez furtou-lhe um dos sapatos durante uma sessão plenária. “Puxei
com a bengala e levei para debaixo da minha mesa”, contou, divertido. Mendes
costuma tirar os sapatos onde quer que possa, para aliviar os pés. “Não percebi
quando ele levou”, disse Mendes. “Depois foi um sufoco, porque os capinhas não
achavam o sapato, e eu tinha que encerrar a sessão. Até que o Eros riu, e se entregou.
Eros é muito brincalhão”, disse Mendes.
O Supremo é das poucas cortes superiores
do mundo a ter ministros condenados pela Justiça. O caso mais recente é o do
ministro Dias Toffoli, condenado no Amapá a devolver 420 mil reais aos cofres
públicos por contrato ilegal entre seu escritório e o governo do Estado. O
ministro recorreu da sentença e, em junho, foi absolvido na segunda instância.*
O outro caso, em que os valores são
muito maiores, é o do ministro Eros Grau. Ele exerceu grande parte do mandato
sob a vigência uma sentença que o condenou a devolver 2,7 milhões de reais ao
erário paulista por contratos ilegais com o Metrô.
A sentença foi proferida em 19 de
setembro de 2005, quando Grau já estava no Supremo, pela juíza Alexandra Fuchs
de Araújo, de São Paulo. A juíza considerou parcialmente procedente uma ação
popular do advogado e ex-deputado Samir Achôa contra contratos administrativos
firmados entre o Metrô e escritórios de advocacia, entre eles o de Eros Grau.
Ele foi contratado, entre 1992 e 1998, pelo critério da notória especialização,
que dispensaria o processo licitatório. Os valores pagos pelo Metrô ao
escritório de Grau somaram 4,8 milhões de reais. A sentença considerou parte
dos contratos ilegais. Entre esses, os que previam consultoria verbal. “Como
pode o Ministério Público, ou mesmo o Tribunal de Contas, exercer o controle
sobre o serviço prestado, se este foi verbal?”, perguntou a juíza Fuchs de
Araújo na sentença.
“A sentença foi reformada na segunda
instância”, disse Grau, manipulando o cachimbo. “E é isso que conta nas
democracias que consideram o trânsito em julgado como a última palavra.” A
mudança da sentença, no entanto, foi feita quase quatro anos depois, em julho
de 2009. O que significa que Grau esteve cinco anos sub judice como
ministro do Supremo. Nessa situação, não se declarou suspeito quando foi
relator de uma ação penal pública muito semelhante, que questionava a
legalidade da contratação emergencial de advogados por uma prefeitura
catarinense. O ministro considerou a ação penal improcedente.
“Depois que sair daqui vou advogar”, disse. “Mas não darei mais parecer
recebendo remuneração do poder público, porque a gente faz o que é melhor, e dá
nisso”, afirmou. O ministro já decidiu que voltará à banca quando deixar a toga.
“Estou alugando um escritório pequeno”, contou.
Grau viveu um momento singular durante uma sessão da Segunda Turma. Deixando os
colegas espantados, quis trazer de volta à pauta uma questão votada, inclusive
por ele, decidida e proclamada em sessão anterior. Disse aos pares que tinha
obtido novas informações a respeito daquele caso, e que talvez fosse
interessante voltar a discuti-lo. Peluso, pasmo, não deixou a sugestão
prosperar. “Onde já se viu isso?”, comentou.
Cármen Lúcia tentou algo parecido em maio: propôs uma segunda votação sobre
questão há pouco vencida. Sua explicação: “Temos que voltar ao caso, porque o
ministro Toffoli, que não podia votar, porque estava impedido, acabou votando.”
Marco Aurélio, escarninho, explicou que aquilo era absolutamente impossível. A
ministra não insistiu.
Eros Grau candidatou-se a imortal na mais recente eleição da Academia
Brasileira de Letras, em junho, e foi derrotado. A sua obra é jurídica, exceto
pelo romance Triângulo no Ponto, do qual gosta, mas já gostou mais. É
uma ficção erótico-política. Ele reclama que a imprensa deu mais atenção ao
primeiro aspecto, quando o segundo é, em sua opinião, o mais importante. É que
o segundo não tem nenhuma frase como “Costa explora o território, inspeciona os
pelos pubianos, o pote de mel, acaricia as nádegas estreitas, separa-as,
experimenta um dedo amanteigado.” Poucos romances do mesmo tamanho – 142
páginas – registram tantas referências culturais. Só da pintura, Grau cita
sete: Degas, Dali, Bosch, Goya, Seurat, Monet, Manet. Do cinema, dezenas. Da
literatura, centenas.
Triângulo no Ponto gerou
constrangimentos internos. Grau queria lançar a obra lá, mas esbarrou no pudor
calado, mas ativo, da ministra Ellen Gracie, então presidente da casa. Gracie
saiu do mutismo quando o ministro Marco Aurélio disse a ela, para chocar, que
estava lendo a obra erótica de Eros. “Eu não acredito, ministro”, ela
respondeu, olhando-o de cima. Quando terminou a leitura, Marco Aurélio, com a
intenção de chocá-la, deu seu veredito sobre o romance: “É fino na forma e
grosso no conteúdo.” Maior rubor a corte jamais viu.
“Aprendi muito aqui no Supremo – e mais da vida do que do direito”, disse
Eros Grau, fazendo um balanço antecipado. “Fiquei mais tolerante e prudente.
Entendi que é grave e sublime tomar decisões que vão ser determinantes na vida
de outras pessoas.” Autor de votos polêmicos e retoricamente trabalhados – que
às vezes ele mesmo considera maçantes – Grau levou alguma irreverência para o
Tribunal. É comum dizer a assessoras “não me telefonem e não me encham o saco
na próxima meia hora” – e a atender carinhosamente ligações de Tânia, sua
mulher. “Amo você, princesa da minha vida”, diz ele ao telefone para todos
ouvirem.
O Supremo, quosque tandem?
A indicação dos juízes, os pedidos de vistas, os
conflitos de interesse, o ativismo e as disputas entre ministros – a agenda de
dificuldades do STF
por Luiz Maklouf Carvalho
O desembargador Antonio Cezar Peluso queria virar
ministro do Supremo Tribunal Federal quando Fernando Henrique Cardoso estava na
Presidência. Amigos fiéis pelejaram pelo seu nome e o presidente gostava dele,
mas a vaga não foi sua. “O Peluso é bom e eu queria nomeá-lo, mas a vez era de
uma mulher”, disse Fernando Henrique. A decisão foi mais de Ruth Cardoso do que
dele. E a também desembargadora Ellen Gracie, indicada e escorada por Nelson
Jobim, ganhou o posto. Quando o reinado tucano findou, Peluso disse a amigos:
“Acabou. Vou me aposentar como desembargador e aproveitar a vida.”
Jamais imaginou que o petismo fosse buscar um conservador como ele. Mas hoje lá
está ele, na cadeira de presidente, com a alegria de um menino esforçado que
conseguiu chegar a primeiro da classe. Peluso não se importa com a definição de
“paciência zero”, que percorre o tribunal. Se for acrescentada a expressão “com
a burrice”, é capaz de aplaudir. Também não se altera com observações sobre
decisões atrapalhadas ou incoerentes do Supremo, que recendem a insegurança
jurídica.
“No Brasil, o mundo jurídico não reage à altura aos erros do Supremo”, disse.
“A maioria das críticas não tem pertinência, não avança no conteúdo, o que
seria fundamental para melhorar a qualidade. Nos Estados Unidos, eles não
perdoam. Há uma produção acadêmica com massa crítica sobre as decisões da
Suprema Corte.”
Aparentemente, ficou satisfeito com a observação de que é um dos poucos
ministros capazes de se meter em discussões complexas de improviso, sem ler. Retrucou com uma citação de Fulton Sheen:
“Quem se dirige aos outros deve dar preferência em falar sem ler, porque não
corre o risco de perder a espontaneidade.” O Google informa que Fulton Sheen
(1895–1979) foi um arcebispo católico americano. Quem mais saberia isso, e
ainda mais de memória, senão o ministro Peluso?
Ele teve um tio arcebispo, com quem morou por muitos anos. Foi seminarista por
conta disso, e acalentou o desejo de ser papa. Mas desistiu e em 1962 foi
cursar direito numa faculdade católica de Santos. “Eu achava que comunista
comia criancinha e apoiei os militares”, disse. “Foi um erro do qual me
arrependi.” Peluso não tem nem mestrado
nem doutorado. Começou os dois, mas não os concluiu. No doutorado inconcluso,
seu orientador foi Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura e juiz do
Supremo. “Uma ótima pessoa”, é a sua opinião.
Peluso situa seu arrependimento do apoio à ditadura antes do Ato Institucional
nº 5. Gosta de contar sobre sua atuação pró-direitos humanos em presídios
abarrotados, quando era corregedor auxiliar do Tribunal de Justiça de São
Paulo. Disse que uma vez fez um relatório “violentíssimo” contra o delegado
Sérgio Fleury, o torturador, a quem chamou de “famigerado”, sendo
posteriormente obrigado a cortar o termo por ordem superior.
Foi para o Supremo, como agradeceu no discurso de posse, por obra e graça de
Márcio Thomaz Bastos, e, claro, a concordância do presidente Lula. Tem na casa
fama de metódico, irritadiço e autoritário. Numa entrevista, é reservado,
irônico e, quando quer, bem-humorado. Gosta do chamado samba de raiz – só de
ouvir, esclareceu.
Não é de comentar os votos, mas se explicou no caso do processo contra Antonio
Palocci por quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa.
Não aceitou a denúncia porque a tipificação do crime estava errada. “Não havia
prova de que Palocci tinha mandado quebrar o sigilo do caseiro, mas havia prova
de que sabia que isso havia sido feito, e não tomou providência, o que
configura o crime de prevaricação”, disse. “Como a denúncia não o criminalizava
por isso, só pude votar como votei.”
Peluso assumiu a presidência com 700 processos prontos para levar a julgamento
nas plenárias de quarta e quinta-feira. “É muita coisa”, disse, embora seja
menos de 10% dos processos em tramitação. “Precisamos ser mais breves”,
continuou, criticando as intervenções demoradas, inclusive as suas (a leitura
do seu voto pela extradição de Cesare Battisti demorou cinco horas).
Admirador do sistema americano, no qual a deliberação não é pública, gostaria
que o Supremo adotasse uma forma colegiada de tomar decisões, com os ministros
conversando entre si antes dos julgamentos. A Corte americana tem sessões
públicas para os “hearings”, uma espécie de sustentação oral dos advogados, mas
muito mais interativo que no Supremo brasileiro. Os juízes americanos, contudo,
deliberam em sessões fechadas e também por escrito, trocando entre eles
memorandos que vão e voltam, por meses. As sessões também são fechadas na
Alemanha, na Espanha, na Itália, na África do Sul e no Canadá.
“O processo de formação de opinião pode ser reservado de modo formal, porque é
assim informalmente, já que alguns ministros conversam a respeito dos casos”,
disse o presidente do Supremo. “O problema do Brasil é a gente nunca saber o
que a corte pensa. Saber isso traria maior transparência e segurança jurídica.”
Peluso sabe que há forte resistência à colegialidade, especialmente da parte de
Marco Aurélio Mello. Mas acha que com paciência e habilidade poderá avançar.
Peluso precisará disso e de algo mais para concretizar duas bandeiras que
anunciou. A primeira é a redução das férias do Judiciário de sessenta para
trinta dias, uma heresia para quem se beneficia de dois meses de folga. A outra
é o aumento de salários do Supremo, uma heresia para quem não trabalha lá.
“Você já sabe do que nós vamos falar”, disse
Lula ao advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli. O assunto era a
próxima vaga do Supremo. Toffoli respondeu: “Eu sei do que nós vamos falar,
presidente, mas eu não vou aceitar porque o seu preferido, o do coração, não
sou eu.” Lula encerrou o assunto: “É, mas o Sig não quis, e vai ser você
mesmo.” Um abraço selou o convite e a concordância de Toffoli. Sig é o apelido
do advogado Sigmaringa Seixas, um dos amigos mais queridos do presidente.
Poderia ter ido para o Supremo desde a primeira levada lulista – três de uma
vez – mas nunca aceitou os convites. “Eu prefiro advogar”, disse, em seu
escritório, explicando o desapego.
De uns mais, de outros menos, Márcio Thomaz Bastos foi o avalista de todos
os oito ministros que Lula indicou e o Senado referendou. Para quem reclama da
qualidade da atual corte, ele diz: “O presidente Lula quis fazer um Supremo
arejado, mais aberto e voltado para a nação, ao invés de um em fim de carreira,
voltado para si próprio. Um Supremo capaz de experimentar, com todos os riscos
inerentes a isso, até o risco de Brasília estranhar.” Deu um breque, pensou e
continuou: “O mecanismo de indicação é muito bom, desde que o Senado cumpra o
seu dever de escrutinar e investigar os indicados. É isso que faz funcionar o
sistema de pesos e contrapesos. Mas isso não tem existido, infelizmente.”
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Mozart Valadares Pires,
acha que a forma atual de indicação “não atende aos princípios republicanos”. A
Associação elaborou uma proposta de emenda constitucional para mudá-la que está
tramitando no Congresso. Ela estabelece a idade mínima de 45 anos de idade e
vinte de atividade jurídica. Os indicados comporão uma lista sêxtupla,
elaborada pelos ministros do tribunal, que será submetida à escolha do
presidente da República. O nome indicado terá que ser aprovado por três quintos
dos votos do Senado.
No gabinete ao qual ainda está se habituando, Toffoli recebe sem gravata. Era o
final de expediente, depois de uma sessão cansativa. Ele tem uma cafeteira
nova, que ele mesmo trouxe, mas isso não dispensa a presença do garçom Manuel
Nunes Barbosa. Na média, ele serve 120 cafezinhos por dia no gabinete do
ministro mais jovem da corte, onde cerca de quarenta funcionários dão
expediente, fora os advogados que o ministro costuma receber (com agenda
anunciada na internet).
“É claro que o cargo me fez mudar”, disse o ministro mais jovem. “Antes, numa
advocacia com forte viés político, eu é quem tinha que provar, correr atrás.
Agora, são os outros que têm que provar a mim. É algo mais recluso, mais
retirado da sociedade e da vida. Aqui você tem que se despir de preconceito,
paixão e opções pessoais. Fácil não é, mas me sinto maduro para a função.” Como
nasceu e viveu num colegiado – é o oitavo filho, de nove – o ministro acha que
não está tendo maiores dificuldades para se adaptar ao coletivo. “Quem chega
aqui não precisa provar nada para ninguém”, disse. “Aqui não tem bandido nem
mau-caráter. Há as vaidades, mas é só.”
Fernando Henrique Cardoso indicou três ministros. Um deles, Gilmar Mendes – tal
como Toffoli para Lula –, era seu advogado-geral da União. “Esse Toffoli, que
só vi uma vez na vida, o Senado tinha que tê-lo investigado muito mais”, disse
o ex-presidente. “Tinha que ter feito isso porque ele foi advogado do PT, foi
advogado pessoal do Lula, e é muito moço, não tem títulos. Não estou dizendo
que não pudesse ter aprovado a indicação. Mas devia demonstrar para a opinião
pública que, pelo menos, ele tinha potencial para ser um bom ministro. Tenho
uma boa impressão dele, acho até que vai virar um bom juiz. Mas acho arriscado
nomear alguém que pode virar um bom juiz. É melhor botar alguém que já
seja.” Ao ser indicado, Toffoli tinha
uma condenação em primeira instância, da qual foi posteriormente absolvido.
Ainda que tenha indicado oito juízes, Lula nunca teve a maioria da corte.
Tanto que o Supremo lhe criou embaraços ao aceitar a denúncia dos implicados no
mensalão. E contrariou expressamente uma decisão do ministro da Justiça quando
deliberou que Cesare Battisti pode ser extraditado. Tampouco se pode dizer que
nele exista uma ala de esquerda e outra de direita. Nem que haja uma clivagem
entre conservadores, liberais e progressistas, seja em matéria social,
econômica ou de costumes.
Nos Estados Unidos, a existência secular de dois campos bem definidos, o
republicano e o democrata, encontra expressão ideológica na Corte Suprema. Lá,
todo mundo sabe quem são os juízes conservadores e liberais. No Brasil, a
polarização entre PT e PSDB é recentíssima, não teve projeção institucional – e
ambos dependem da geleia geral peemedebista. E mesmo que se admita que os dois
partidos tenham uma ideologia identificável, ainda assim é difícil discernir um
do outro no terreno dos princípios jurídicos.
A ausência de balizas é agravada pela
irrelevância da jurisprudência no Judiciário brasileiro. Uma decisão do Supremo
não cria uma norma que venha a servir de orientação no futuro. Com o
desrespeito frequente ao que foi previamente decidido, o tratamento de uma
mesma questão, em poucos anos, pode ser bastante diferente. Com isso, os juízes
estão à vontade para atuar individualmente.
“O Supremo é menos um colegiado e mais
uma soma de individualidades, e isso é ruim para a democracia”, disse Luís
Roberto Barroso em sua casa, no Lago Sul. Advogado com banca renomada, mestre
pela Universidade Yale, Barroso é um dos nomes cogitados pelo presidente Lula
para substituir Eros Grau, que se aposentou no mês passado. Pelo menos dois
ministros, Celso de Mello e Marco Aurélio, gostariam de tê-lo como colega.
“As instituições devem ser preservadas, mesmo quando o seu desempenho não
corresponde ao ideal”, disse Barroso como preâmbulo para as suas ideias de
mudança. “O ideal seria julgar uns mil casos emblemáticos por ano, com
visibilidade, transparência e qualidade.” Pensa que ex-ministros não deveriam
voltar à ativa. “Ao final do mandato, o melhor é escrever as memórias, ou ser
professor”, disse. Advoga uma “revolução da brevidade”, ou seja, que os votos
sejam mais curtos. Também acha que o voto do relator deveria circular entre os
ministros antes do julgamento em plenário, “para que todos possam preparar-se
melhor, inclusive os discordantes, o que evitaria a frequência de pedidos de
vistas.”
O pedido de vistas, no entender do ex-presidente Maurício Corrêa, “é o drama
pior, mais terrível, mais lamentável, do Supremo. Tem ministro lá que está com
processo desde que tomou posse”. Ele mostrou duas regras do regimento, criadas
na sua gestão, estabelecendo prazos para os pedidos de vista e para a devolução
das notas taquigráficas revisadas. “Na minha época, os prazos eram
respeitados”, disse. “O problema é que eles relaxaram, ninguém cumpre.” Um
outro ex, Ilmar Galvão, brincou: “O pedido de vista está mais para vista
grossa.”
Celso de Mello, o decano da casa, também acha exagerada a quantidade de pedidos
de vista e se queixa da demora dos colegas em trazer de volta os processos. Mas
não lhe venham com essa história de brevidade, de falar menos. Entre as
deferências regimentais ao decano figura a de ser o último a falar. “Quando a
sessão está no finalzinho e o Celso pede a palavra, eu só falto chorar”, disse,
brincando, Gilmar Mendes.
Mas é isso mesmo: os relatórios e votos de Mello costumam ser enormes, e ele
não tem a mais remota preocupação de que aquilo possa ou esteja incomodando
quem quer que seja. “Isso aqui é história, e a minha obrigação é fazer o melhor
possível”, disse, já perto da meia-noite, em seu gabinete enorme no
6º andar do anexo ii.
Notívago a la José Serra, Mello conseguiu que um ascensorista fique à
disposição de seu gabinete madrugada afora. É que ele vira as noites lá, com
diversos funcionários. Costumava sair com o dia amanhecendo. Mas agora, por
ordens médicas, não passa das duas da manhã. O ministro abusa da saúde. Além de
ser louco pelos sanduíches do McDonald’s, toma um café que parece uma borra, de
tão grosso. Está tentando controlar as duas manias.
“Nunca falei com Daniel Dantas, nem pessoalmente nem pelo telefone, conheço-o
de ver na tevê, como todo mundo”, disse o ministro Gilmar Mendes na cabeceira
da mesa de seis lugares no seu gabinete. Não fazia nem um mês que deixara a
presidência do Supremo. Andava distante dos microfones da imprensa e mais
calado nas sessões, mas disse se sentir “muito bem, com a sensação do dever
cumprido”. Tirante o ministro Joaquim Barbosa, acha que a sua gestão contou com
a aprovação dos colegas, do mundo jurídico e da grande imprensa. Citou como
exemplos os editoriais elogiosos do Estado e da Folha de S.Paulo.
Duas semanas antes de deixar o cargo, Mendes fez um périplo por três capitais
do Nordeste num dia só. Visitou projetos sociais do Conselho Nacional de
Justiça, também presidido por ele. Um dos projetos que incrementou foi o dos
mutirões carcerários, que, segundo números do cnj, libertaram 20 mil presos em
condições irregulares em todo o país.
“Sentimos que mandamos bem”, disse o ministro, tranquilo e sem sapatos, no
jatinho oficial. “Avançamos muito no processo eletrônico, que tem diminuído
bastante o acúmulo de processos. O STF hoje é o tribunal mais respeitado do
país. E evitamos um namoro explícito com o estado policial. Havia um quadro
explosivo que nos levava a um modelo em que a polícia mandava no Ministério
Público e em juízes da primeira instância. Era preciso arrostar esses abusos. E
eu tive medo de ter medo.”
É aqui que entra o banqueiro Daniel
Dantas, alvo da Operação Satiagraha. Mendes mandou soltá-lo duas vezes,
concedendo-lhe habeas corpus quando o juiz Fausto de Sanctis quis
manter o dono do Opportunity na prisão. Mendes considerou que o juiz,
erradamente, se subordinara ao Ministério Público e ao delegado encarregado da
investigação, Protógenes Queiroz. De Sanctis não quis dar entrevista a
respeito: “Por impedimento legal não posso falar de fato concreto, as decisões falam
por si”, disse-me ele.
“Juiz é elemento de controle do inquérito, não é sócio da investigação”,
afirmou Gilmar Mendes, sobrevoando Salvador. Ele contou os antecedentes de sua
primeira decisão: “A Guio me ligou, dizendo que podiam prender até a Andréa
Michael, da Folha de S.Paulo. O governo estava de cócoras em relação aos abusos
da polícia. Eu tinha que dar um basta naquilo, fosse Daniel Dantas ou fosse
qualquer um.” “Guio” é Guiomar Mendes, esposa do ministro.
Outro risco de estabelecimento de um “estado policial” surgiu, segundo Mendes,
quando a revista Veja publicou uma reportagem sustentando que um
telefonema de Mendes com o senador Demóstenes Torres havia sido gravado
ilegalmente, e apresentou como evidência a transcrição da conversa. Com a certeza
de que fora grampeado por um órgão do Executivo, Mendes ligou para Fernando
Henrique Cardoso. Eles são amigos. Nos tempos de Gilmar na presidência,
Fernando Henrique entrava pela garagem do Supremo. “Foi só uma vez, na posse”,
disse o ex-presidente.
“Eu estava numa fazenda”, contou Fernando Henrique em São Paulo. “O Gilmar
estava indignado. Disse que ia reagir à altura, chamando às falas o presidente
Lula. Eu o incentivei a ir em frente.” Mendes foi. “Não há mais como descer na
escala da degradação institucional”, declarou ele à imprensa. “Gravar
clandestinamente os telefonemas do presidente do STF é coisa de regime
totalitário. É deplorável, ofensivo, indigno.” No dia seguinte, uma delegação
do STF integrada por Mendes, Ayres Britto e Cezar Peluso foi ao Planalto sem
ter sido convidada. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva os recebeu.
Perguntei ao ex-presidente se, numa situação semelhante, receberia a comitiva.
Fernando Henrique ajeitou-se na poltrona e respondeu: “Não sei se teria
aceitado aqueles termos. Talvez tivesse exigido uma reparação pública antes,
uma desculpa. Mas o Lula é de passar a mão na cabeça dos aloprados e de todo
mundo. Ele não é de confrontar. Ele só confronta na retórica, o
comportamento dele é o de um conciliador.” Lula acha que esse foi um dos
momentos de seu governo em que ele foi mais adulto e mais ciente do seu papel
institucional – e menos ele próprio.
No encontro, os três juízes deram como certo que gente do Executivo
bisbilhotava a mais alta corte e o Congresso, e cobraram providências.
Enfático, o ministro Franklin Martins, da Comunicação Social, argumentou que a
denúncia do grampo não tinha comprovação porque o áudio não aparecera. E disse
que o governo não podia ser responsabilizado sem provas. Os ministros mal reconheceram
sua interlocução. Lula mais ouviu do que falou. Dias depois, à guisa de
reparação, mas sem explicitá-la, determinou que o delegado Paulo Lacerda saísse
da chefia da Agência Brasileira de Inteligência.
“Não retiro uma vírgula do que disse”,
falou Mendes no avião. “Eu e o presidente Lula temos uma ótima relação.” A
aproximação foi iniciada pouco depois de Mendes assumir o comando da corte,
quando se articulou um jantar no Alvorada, junto com Nelson Jobim e Eros Grau.
Depois de uns uísques, o gelo foi quebrado e a conversa com o presidente fluiu.
A aproximação se consumou quando o Supremo, com o voto de Mendes, decidiu
que o ex-ministro Antonio Palocci não deveria sequer ser investigado pela
acusação de quebrar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Numa
conversa com assessores, o presidente disse então que Mendes era “um juiz sem
mesquinharia, que pensa no país e na governabilidade”.
A atitude de Mendes de ir ao Planalto cobrar providências se inscreve numa
tendência em alta nos últimos anos, a do ativismo jurídico. Ela é produto das
dimensões paquidérmicas assumidas pelos Estados contemporâneos, em
contrapartida à velocidade das comunicações e reclamos da cidadania. Na
prática, leva os tribunais a pressionarem diretamente, e mesmo a exercerem funções
de administradores públicos e de legisladores. Com isso, tornam-se inevitáveis
os atritos, de maior ou menor monta, com o Executivo e o Congresso. Tornam-se
correntes, igualmente, aquilo que alguns juristas chamam de protagonismo (o
Judiciário se tornar sujeito da vida político-institucional) e personalismo
(juízes se tornarem quase celebridades, pois deixam de falar apenas nos autos,
como reza o formalismo).
O ativismo jurídico ocorreu quando o Supremo decidiu que, ao trocarem de
partido durante a legislatura, parlamentares perderão o mandato. Com isso,
buscou atenuar a troca de legendas no Congresso, que costumava ocorrer logo
após as eleições. Noutra imersão em águas do Legislativo, a corte decidiu que,
em caso de greves, o funcionalismo deve seguir a legislação imposta aos
trabalhadores do setor privado.
Gilmar Mendes foi protagonista e
personalista na sua presidência. “O presidente de um poder, como é o caso
do Supremo, tem mais é que falar, não nos autos, mas bem alto”, disse. Maria
Tereza Sadek, professora de ciência política da Universidade de São Paulo,
concorda com a premissa: “O conceito de que juiz só fala nos autos está
ultrapassado no mundo inteiro.” Mas não considera a questão tranquila: “O
problema é saber qual é o limite para a liturgia do cargo. O Gilmar não foi o
primeiro ativista do Supremo. Houve o Sepúlveda, e depois o Jobim. O Gilmar
extrapolou um pouco, eu critico isso, mas acho que ele é uma figura
pluridimensional, que fez uma revolução, principalmente no Conselho Nacional
de Justiça, e tem que ser respeitado por isso.”
O advogado Reginaldo de Castro, ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados
do Brasil, insurgiu-se contra a indicação de Gilmar Mendes para o Supremo. E
pediu que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado vetasse a indicação.
Suas acusações não prosperaram. “Não quero voltar a isso”, disse Castro em seu
escritório, depois de acender uma bagana de cigarro que esconde de si próprio,
para ver se larga o vício. “Mas tenho que reconhecer que ele fez uma grande
gestão na presidência do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça.” Mendes deu
de ombros, olimpicamente, quando falei dos que quiseram vetá-lo, como Castro e
o jurista Dalmo de Abreu Dallari.
Tirante que o ouvido esquerdo não está nas melhores condições, Dalmo Dallari
vai bem, obrigado, nos seus 78 anos. Tem um gato, dos grandes, que arranha
vigorosamente a perna da poltrona quando quer colo, que ele dá. Na sala de sua
casa, há um retrato no qual um jovem Lula posa ao lado de um dos dez netos de
Dallari. Em outra foto, o Lula de hoje aparece com a sua filha Mônica. O
jurista começou a entrevista com quatro propostas para o Supremo.
Três delas têm seguidores: que o STF vire uma corte constitucional, que os
indicados sejam escolhidos preliminarmente por votação direta da comunidade
jurídica, e só depois pelo presidente e pelo Congresso, e que os ministros
tenham mandato de dez ou quinze anos. A quarta, que considera tão ou mais
importante que as outras, é singular: tirar o Supremo de Brasília e levá-lo de volta
ao Rio. “A proximidade com o centro político é muito prejudicial”, disse o
professor aposentado da Universidade de São Paulo, fazendo cafuné no pescoço do
bichano. “Na Alemanha, a Corte Constitucional fica a muitos quilômetros de
Berlim”, exemplificou.
Dallari conheceu Gilmar Mendes quando este era advogado-geral da União e
auxiliava o ministro Nelson Jobim, da Justiça, em questões indígenas. “Tive uma
péssima impressão dele nas reuniões em que nos encontramos; eu defendendo os
índios, e ele desenvolvendo uma argumentação típica de grileiro de luxo, de
quem vê o índio como empecilho ao desenvolvimento nacional”, disse. “Depois
houve uma denúncia, da revista Época, mostrando que ele, na
Advocacia-Geral da União, contratava o seu próprio estabelecimento de ensino
para dar cursos a servidores de lá. Para mim, isso é corrupção.”
Em maio de 2002, Dallari publicou na Folha de S.Paulo um artigo,
“Degradação do Judiciário”, com essas e outras acusações. “Se essa indicação
vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo
sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a
própria normalidade constitucional”, diz um dos trechos. O argumento técnico
era que Mendes não tinha reputação ilibada, exigência constitucional para o
posto.
Ainda à frente da Advocacia-Geral, Mendes pediu que o procurador-geral da
República o defendesse. O procurador entrou com uma ação penal contra Dallari
pelos crimes de injúria e difamação. Enquanto o processo tramitava, o Senado
aprovou a indicação de Mendes, com quinze votos contrários, de um total de 72,
um número bastante alto. O juiz federal Sílvio Luís Ferreira da Rocha
sentenciou que o artigo de Dallari se enquadrava no adequado direito de
crítica, sem configurar ofensa à honra, e determinou o arquivamento do caso.
Mendes não recorreu.
“Não retiro uma vírgula do que escrevi”, disse Dallari exibindo a sentença. Ao
contrário de Reginaldo de Castro, continua a criticar Mendes: “A gestão dele
como presidente foi muito negativa, com excesso de personalismo. Em busca de
autopromoção, agiu como um verdadeiro inquisidor.”
Mesmo depois da viagem de três capitais nordestinas em um só dia, que terminou
de madrugada, Gilmar Mendes estava a postos na manhã seguinte, um sábado, dando
uma aula no Instituto Brasiliense de Direito Público. O IDP é uma faculdade
particular que fica numa área de 6 mil metros quadrados da Asa Sul. Ela
pertence a três professores: Inocêncio Coelho, Paulo Branco e Gilmar Mendes. “É
tudo perfeitamente constitucional”, ele disse, acrescentando que constituiu os
advogados Sepúlveda Pertence e Sergio Bermudes a abrir processo contra
publicações e jornalistas que afirmaram ou insinuaram o contrário.
“Eu tenho que vir, porque muitos se matriculam por causa do meu nome”, disse o
ministro durante o intervalo. “Querem ter uma aula com o presidente do
Supremo.” A aula daquela manhã durou três horas e teve quinze alunos como
espectadores. De maneira profunda e didática, ele falou sobre o controle de
constitucionalidade, tema das suas dissertações de mestrado e doutorado na
Universidade de Münster, na Alemanha. Deu vários exemplos citando casos do
próprio Supremo.
Durante a presidência de Gilmar Mendes, Joaquim Falcão, professor de direito
constitucional da Fundação Getulio Vargas, foi juiz-conselheiro do Conselho
Nacional de Justiça. Um dos casos que lhe caiu nas mãos foi uma representação
contra o juiz Ari Ferreira de Queiroz, de Goiânia. O juiz era
sócio-proprietário do Instituto de Ensino e Pesquisa Científica, uma escola semelhante
à de Gilmar Mendes, embora mais modesta. A representação visava impedir que
Queiroz fosse, simultaneamente, juiz e dono de uma faculdade.
No seu despacho, Joaquim Falcão afirmou que “nos Estados Unidos, o juiz não
pode emprestar o prestígio de seu cargo para promover interesse privado”. E se
perguntou: “Pode um juiz contribuir com o prestígio de seu cargo, que é
público, para beneficiar os interesses privados seus e/ou de outros?”
Para responder, foi ao artigo 36, inciso I, da Lei Orgânica da Magistratura: “É
vedado ao magistrado exercer o comércio ou participar de sociedade comercial,
inclusive de economia mista, exceto como acionista ou cotista.” O juiz
Queiroz – ou o ministro Gilmar Mendes – se enquadrariam nessa exceção. Mas não
para Joaquim Falcão. Ele sustentou que o juiz pode participar numa sociedade
comercial “exclusivamente como acionista ou cotista, ou seja, de forma não
individualizável. De modo que a pessoa física não se utilize do prestígio
gozado pelo magistrado como titular de um cargo público”. Portanto, um juiz
pode ser acionista e cotista numa sociedade comercial em que sua propriedade
esteja diluída e seja anônima. Quando o juiz é reconhecido como proprietário
individual de uma sociedade comercial, segundo Falcão, ele “está claramente exercendo
ato de empresa, já que o prestígio de seu cargo está sendo utilizado para
buscar lucros, contrariando, portanto, as proibições legais”.
Na decisão, Falcão determinou “o imediato desligamento do magistrado de sua
qualidade de sócio-cotista e a desvinculação total da imagem do magistrado e do
Instituto”. O juiz Queiroz, de Goiânia, acatou a decisão. Por que Falcão não
levou a questão ao plenário do Conselho Nacional de Justiça, presidido por um
dos sócios proprietários do Instituto Brasiliense de Direito Público? Porque
Falcão achou que Gilmar Mendes teria maioria dos votos a seu favor.
“Ministro, não me queira, não: é fria para o senhor”, disse, com forte sotaque
cearense, Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima para o ministro Marco Aurélio
Mello. Bacharel em direito, formada na mesma turma de Gilmar Mendes, a doutora
Guiomar era, naqueles meados de 1995, chefe de gabinete de um ministro do
Tribunal Superior do Trabalho. Na época em que esteve no mesmo tribunal, Marco
Aurélio ficou bem impressionado com a competência da doutora Guiomar e a
convidou para trabalhar com ele quando foi para o STF.
“Eu trabalho com seis coisas: amor, humor, garra, organização, método e
celeridade”, explicou Guiomar ao contar a história. Como era isso que Marco
Aurélio queria, ele não entendeu. E ela explicou: “É fria porque eu tenho dois
defeitos graves e um gravíssimo.” O ministro ouviu os graves: “Eu fumo em
recinto fechado” e “Sou insolente, questiono ordem e vou bater de frente com o
senhor.” Marco Aurélio relevou o primeiro e elogiou o segundo. Guiomar expôs o
defeito gravíssimo: “Eu gero dependência.” Deve ser verdade, pois ela trabalhou
com Marco Aurélio por muitos anos.
Guiomar conheceu Gilmar Mendes no segundo semestre de 1975, quando se
transferiu da faculdade de direito de São João da Boa Vista, no interior
paulista, para a Universidade de Brasília. Tinha 23 anos e estava grávida do
terceiro filho de seu primeiro marido, um capitão aviador da Força Aérea
Brasileira. Mendes, quatro anos mais novo, também estudava direito na UnB.
Ficaram amigos, sem nenhuma sombra de interesse sentimental. Formados, cada
qual tocou sua vida. Mendes teve uma breve passagem pelo Itamaraty, estudou na
Alemanha, casou, teve dois filhos, separou-se, serviu aos governos Collor e
Fernando Henrique, e virou ministro do Supremo. Guiomar teve mais quatro
casamentos, e outros dois filhos, passou em um concurso para a Advocacia-Geral
da União e foi assessora de dois ministros da ditadura, Petrônio Portella e
Ibrahim Abi-Ackel.
Um dia, ambos separados, Mendes propôs que a velha amizade virasse namoro. “Não
dá, tu é o Chico, meu irmão”, ela disse, referindo-se ao ex-deputado federal
Francisco Feitosa, seu irmão. O juiz continuou insistindo, mas ela só aceitava
convites para almoçar. Até que um dia, em 2001, foram jantar na Academia de
Tênis. Ele era advogado-geral da União, no governo de Fernando Henrique, e ela
estava no Supremo com Marco Aurélio. “Quero não, Gil”, continuava a dizer. Mas
o ministro já se fizera gostar pelos filhos e pela mãe dela.
Ficaram noivos em 13 de agosto de 2002, dia do aniversário de Guiomar, numa
festa para poucos na casa dela. Um dos convidados foi Marco Aurélio, que não
queria perder a funcionária exemplar. Mas o noivo, que há poucos meses se
tornara ministro do Supremo, queria justamente tirá-la da função para afastá-la
de Marco Aurélio, enciumado que estava do colega. Na festa, provocador emérito
que é, Marco Aurélio fez um discurso em que botou Guiomar nas nuvens, tantos
foram os elogios. E o encerrou com um seco: “Agora é com você, Gilmar.” Mendes
fez o discurso, mas, segundo a própria Guiomar, retirou-se da festa pouco
depois, irritado.
Trabalhar com Marco Aurélio tornou-se um problema na vida de Guiomar. Mendes
não aceitava. Muitas vezes, telefonava do carro oficial, na frente do Supremo,
no fim do expediente, e dizia: “Guio, estou aqui embaixo te esperando, desce.”
Ela explicava que ainda estava trabalhando com Marco Aurélio. “Diz para ele te
liberar porque eu estou esperando.” “Era um inferno”, ela contou. “Quando eles
discutiam nas sessões, o que era frequente, sobrava para mim.”
Mendes deu então um ultimato: ou ela deixava de trabalhar com Marco Aurélio, ou
o noivado terminava ali. O noivado terminou. Tempos depois, o ministro casou-se
com uma advogada que fora sua aluna. Guiomar não se casou.
Quatro anos depois, abatido por uma separação litigiosa que lhe custou,
conforme afirmou Guiomar, “alguns bois”, Mendes voltou à carga. Enfrentou uma
geleira de mágoa e indiferença. Como insistisse, com recados, ela lhe mandou
dizer, a sério, que consentiria em vê-lo – mas só dali a vinte anos. O ministro
ganhou uma aliada importante, Carminha, que vem a ser a ministra Cármen Lúcia.
Depois de muito esforço para amansar Guiomar, a ministra conseguiu colocá-los
frente a frente, numa sala de sua casa, e pediu que se entendessem. Não foram
longe naquele dia, mas deram o primeiro passo. O segundo foi um presente
romântico, e caro, do ministro: um chalé à beira do Lago Norte, que lhe mostrou
numa noite enluarada.
A trilha sonora da reaproximação foi providenciada por um amigo de ambos, o
jornalista Márcio Chaer. Num dia em que Mendes tentava desesperadamente
reconquistar Guiomar, Chaer lembrou-se de uma música e a indicou à amiga, que
arrefeceu.
Acendendo seu décimo cigarro daquele dia, Guiomar interrompeu a entrevista e
foi colocar a música para tocar, alto. Ouviu-a inteira, enlevada, e comentou
que era linda. Antes que retomasse a história, atendeu uma ligação do ministro
José Antonio Dias Toffoli: “Oi, meu amigo, estou com saudade de você. Vou. Vou
mesmo. Obrigado.” Era um convite para uma reunião que Toffoli daria em sua
casa. Também ligou, pela terceira vez, o advogado Sergio Bermudes. “Oi, meu
irmão, meu amigo querido”, atendeu Guiomar.
Eles se casaram em outubro de 2007. Moram em casas separadas, ambas no Lago
Sul. Guiomar dorme na dele, e volta todas as manhãs para a sua, onde mora com
dois filhos. A segurança do Supremo vigia as duas em tempo integral. O marido é
desligadíssimo, ela disse. Quando atende ao telefone no quarto do casal, o
ministro belisca castanhas salgadas que ela deixa à disposição. “Uma vez eu
substituí por ração de cachorro, e ele comeu do mesmo jeito, tive que correr
para não deixar ele engolir a próxima”, Guiomar contou.
Não foi a única história de amor envolvendo juízes do Supremo. Houve o caso de
um sofá retirado do gabinete da sala privativa de um ministro por ter sido
palco de cenas abrasivas. E houve o romance entre o ministro Francisco Rezek e
uma filha do ministro Carlos Velloso, quando ambos estavam na ativa. Velloso
soube do caso, em casa, quando a filha lhe contou: “Pai, eu e o Francisco
estamos apaixonados e espero que o senhor fique do meu lado.” O ministro
pensou muito, e decidiu apoiar a filha. Quando Rezek foi ao seu gabinete
formalizar o pedido de casamento, Velloso estava mais controlado. “Mas foi
duro”, contou.
Guiomar Mendes era, até o ano passado, a secretária-geral do Tribunal Superior
Eleitoral, presidido pelo ministro Ayres Britto. Um e-mail anônimo o informou
que um funcionário de cargo de confiança era primo de Gilmar Mendes,
configurando nepotismo cruzado. Ayres Britto devolveu o funcionário ao cargo de
origem. Guiomar não gostou. Foi a Britto, disse que o parentesco era de sexto
grau e avisou: “O senhor é conhecido por ser uma pessoa boa, mas isso não se
faz, e estou indo embora.” Um mês depois, foi-se.
“Minha ideia era viver o ócio com dignidade, só que o Sergio me aperreou”,
contou Guiomar, a essa altura no 15º cigarro do dia. Já era noite e um novo
telefonema interrompeu a entrevista. Era, por coincidência, do Sergio que a
aperreara, o Bermudes, no seu quarto telefonema do dia. “Ô meu amigo, ô meu
irmão”, repetiu Guiomar.
Encerrada a ligação, ela explicou: “Conheço o Sergio há muitos anos, desde que
entrei no STF. É o irmão mais velho que eu não tive e eu sou louca por ele. Às
vezes, ele brincava: ‘Dou 1 milhão pra você ir trabalhar comigo.’ Quando me viu
aposentada, me aperreou. Queria que eu cuidasse da gestão do escritório dele de
Brasília. Eu relutei, mas acabei experimentando, por dois dias. Não vi muito o
que fazer por lá e coloquei o cargo à disposição. Ele insistiu, continuei mais
uma semana, organizei as coisas do meu jeito e resolvi ficar. Ele me paga,
líquidos, 14 mil reais por mês. Eu cuido da gestão do escritório. Não advogo,
mas talvez venha a advogar.”
Gilmar Mendes e Sergio Bermudes começaram pelo ódio. O primeiro, quando
advogado-geral da União, chamou o segundo – renomado professor de direito
e dono de respeitada banca cível no Rio – de “chicanista” em um programa
de televisão. Bermudes é dos que mandam cartas. A que enviou a Mendes tinha os
seguintes trechos:
Gilmar, você agrediu-me brutalmente; agrediu, virulentamente, os
processualistas; agrediu os advogados brasileiros e conspurcou a dignidade do
cargo que imerecidamente ocupa.
Insistindo em mostrar as patas, você, muito obviamente, questionou a minha
seriedade profissional.
Minha esperança é que você deixe o cargo que ocupa e que não merece por
causa do seu desequilíbrio, do seu destempero, da sua leviandade, e que abdique
da sua propalada pretensão de alcançar o Supremo Tribunal Federal, onde se
requer, mais que um curso no exterior, reflexão e serenidade, em vez do
açodamento e da empáfia que você exibe.
Perguntei a Sergio Bermudes como se haviam reconciliado. “Nunca falamos sobre
isso até hoje”, respondeu. Contou que no primeiro encontro que tiveram, ambos
palestrantes de um simpósio universitário, cumprimentaram-se como se nada
tivesse acontecido. Depois, ele mandou um livro de presente; e Mendes mandou-lhe
outro. A raiva virou amizade.
“O Gilmar e eu somos irmãos, nos falamos duas vezes por dia”, disse o advogado.
“A gente brinca, ri, sou advogado dele em algumas questões. Somos dois homens
de boa-fé e de caráter que podem suplantar uma eventual divergência.” A sua
opinião profissional sobre o outro também melhorou: “Gilmar é o maior ministro
que o STF já teve em todos os tempos. Trouxe a corte para junto do povo. Nenhum
ministro falou tanto nem tão bem. Suas palavras fizeram o homem comum acreditar
na Justiça. Ele é o maior constitucionalista do Brasil.”
Mendes e Guiomar já se hospedaram nos apartamentos de Sergio Bermudes no Rio,
no Morro da Viúva, e em Nova York, na Quinta Avenida. Também usam a sua
Mercedes-Benz, com o motorista. Logo depois da solenidade de transferência da
presidência do Supremo para Cezar Peluso, Mendes e Guiomar embarcaram em uma
viagem de cinco dias a Buenos Aires – presente de Sergio Bermudes, que os
acompanhou.
Perguntei a Gilmar Mendes se não cogitara abdicar de julgar os processos do
escritório de Sergio Bermudes que tramitam pelo Supremo – são dezenas, e ele é
o relator de alguns. “De jeito nenhum”, ele respondeu. “Nesse caso também teria
que me declarar suspeito nos processos do Ives Gandra, que escreveu livros
comigo, e de outros advogados que são meus amigos.” Mas nem pelo fato de sua
mulher trabalhar no escritório de Bermudes? “Isso não é motivo”, respondeu.
Citei uma frase que ouvi do advogado Reginaldo de Castro: “O Gilmar dorme todo
dia com embargos auriculares.” Mendes riu, desdenhoso.
Guiomar consultou o marido sobre a proposta de trabalho de Bermudes. “Ele não
viu qualquer problema, e não há qualquer problema”, ela disse. “O ministro
Marco Aurélio, por exemplo, não se declara suspeito quando a causa é do
escritório Ulhôa Canto, onde trabalha sua filha.” Depois de uma tragada,
complementou: “É verdade que o ministro Britto se declara suspeito no caso do
genro, desde quando ele era namorado da filha, e que o Toffoli proibiu a
namorada de atuar lá. Mas aí já é um exagero.”
Em sua sala na Fundação Getulio Vargas, de onde se tem uma vista deslumbrante
do Pão de Açúcar, Joaquim Falcão lembrou um episódio ocorrido quando o
presidente Barack Obama indicou Sonia Sotomayor para a Suprema Corte.
Encarregado de avaliar a candidata, o Senado pediu que ela respondesse por
escrito se haveria alguma situação em que teria dificuldades em julgar.
Sotomayor respondeu que se declararia impedida em casos que envolvessem uma
universidade, uma indústria e um escritório de advocacia com os quais tivesse
mantido relações profissionais.
O professor da fgv citou também o caso do advogado Laurence Tribe, um dos que
mais ganhou causas na Suprema Corte. Quando perguntaram a Tribe por que ganhava
tantas causas, ele explicou que tinha o maior banco de dados sobre a vida de
cada ministro, pessoal, profissional e política. Essas informações lhe permitam
prever com segurança os votos de cinco juízes. Então, ele calibrava a arguição
para os outros quatro. Com os olhos no cartão-postal carioca, Falcão disse: “O
Sergio Bermudes tem, com certeza, o principal banco de dados sobre o Supremo.”
Falcão defendeu que o Judiciário enfrente sem pejo a questão, polêmica e
complexa, da imparcialidade. Ele acha que deve acabar o “nepotismo processual”,
o baseado nas relações entre os magistrados e os advogados. “No nepotismo
processual, o prejudicado é a outra parte, aquela que não tem acesso às
informações que uma relação de amizade e parceria profissional possibilita.”
Demitido pela Universidade de Brasília, aposentado compulsoriamente, e cassado
pelo Ato Institucional nº 5, o professor e advogado Sepúlveda Pertence passou
por um período ruim durante a ditadura. Sergio Bermudes o ajudou bastante,
chegando a levar os filhos do amigo, Evandro e Eduardo, para morar consigo.
Com o fim do regime militar, Pertence foi nomeado ministro do Supremo, onde
ficou dezoito anos. Evandro e Eduardo foram trabalhar com Sergio Bermudes.
Quando casos do escritório chegavam ao tribunal, apesar de nenhuma lei ou regra
obrigá-lo, ele se declarava suspeito e não os julgava. “Eu, o Nelson Jobim, o
Ilmar Galvão e o Velloso tínhamos essa prática, que era exercida com
discrição”, disse Pertence em Brasília, no escritório de Sergio Bermudes, onde
ganhava como consultor 50 mil reais por mês, mais um percentual sobre os casos
em que atuava. Num deles, uma sustentação oral no Superior Tribunal de Justiça,
ganhou 4 milhões de reais. No começo de agosto, Pertence abriu em sociedade com
os filhos seu próprio escritório.
Foi com Sepúlveda Pertence que o Supremo começou a sair do casulo, adquiriu
presença pública e deu passos modernizantes, como a informatização. Entraram
para os anais suas contendas com outro baluarte da casa, o conservador Moreira
Alves. “Diante desse funk que vejo hoje, as minhas brigas com o Moreira parecem
minuetos”, disse ele. Sepúlveda aposentou-se do Supremo três meses antes da
data limite, novembro de 2007, quando completaria 70 anos. Como ele defendeu
Lula quando era sindicalista, e é amigo do presidente, correu nos meios jurídicos
que se aposentou antes para não se posicionar sobre o caso do “mensalão”, que
envolvia o PT.
Mas isso não é verdade. Pertence saiu antes da data por cansaço e a pedido de
Sergio Bermudes, um dos articuladores da indicação de Carlos Alberto Menezes Direito
para o Supremo. Se fosse esperar o ministro sair na data devida, Direito teria
feito aniversário (em 8 de setembro) e atingido a idade proibitiva para a
indicação, 65 anos.
Numa conversa com o presidente, no começo de 2006, Lula perguntou a Pertence:
“E aí, Zé Paulo, quem vai para a tua vaga?” O juiz citou o nome do
constitucionalista Luís Roberto Barroso e o da prima distante, Cármen Lúcia.
Mas Bermudes pediu por Menezes Direito. Nelson Jobim também o apoiou e Márcio
Thomaz Bastos concordou com o pleito.
“O motivo da minha saída foi fazer uma homenagem ao Menezes Direito e a todos
que patrocinaram a sua candidatura”, disse Pertence. “Ele não era o meu perfil,
não seria o meu candidato, mas tinha excelentes relações pessoais. Eu vou
sacrificar o sonho de um sujeito por causa de mais dia ou menos dia? Não achei
que era justo, e saí.”
Filhos advogados é um tema delicado no Supremo e nos outros tribunais
superiores. Dos ministros que já saíram, são mais conhecidos os casos dos
filhos de Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Eros
Grau. A praxe era pedir suspeição. Da composição atual, além de Marco Aurélio,
há a filha da ministra Ellen Gracie.
Joaquim Barbosa entende que a suspeição não é suficiente. “Deveria ser
simplesmente proibido até o parentesco de terceiro grau”, disse-me ele durante
um café numa padaria chique de Higienópolis, em São Paulo. No caso de esposa,
como Guiomar, que a lei não proíbe, Barbosa acha que Mendes deveria declarar-se
suspeito.
Barbosa não esconde que detesta Sergio Bermudes e o casal Mendes. A recíproca é
verdadeira. O advogado o considera “o pior ministro da história do
Supremo”. Bermudes contou, às gargalhadas, que ouviu de um colega a “explicação
verdadeira” para as dores de coluna de Joaquim Barbosa: “Ele quis virar
bípede.” Para Guiomar Mendes, “o problema desse cabra é que ele é preguiçoso,
preguiçoso de dar dó”. Mendes endossou o “preguiçoso” e acrescentou um
“despreparado”.
Joaquim Barbosa não deixou por menos. Disse que Gilmar Mendes é “violento,
atrabiliário e aparelhou o Supremo para seus interesses monetários e
partidários”. Os dois sequer se cumprimentam. “O mais interessante é que nós
fomos amigos por trinta anos, desde os tempos da faculdade”, contou Barbosa.
Ele visitou Mendes na Alemanha, e até comprou um carro dele.
Joaquim Barbosa sabe que Mendes é um dos que divulgam uma história que o irrita
muito – a de que não foi ele quem escreveu o seu voto como relator do mensalão,
e sim Salise Sanchotene, à época sua juíza auxiliar. O ministro nega a
história.
Barbosa chegou à padaria de Higienópolis com uma sacola verde de pano. Tirou de
dentro uma almofada estampada sem muito enchimento, colocou-a na base da
cadeira e sentou-se. Não reclamou de dor durante os 150 minutos do primeiro
encontro, nem durante os 180 do segundo. “Estou achando que o tratamento está
dando certo”, disse.
Fazia quatro semanas que estava hospedado num hotel ali perto, durante os dois
meses de licença médica que tirou para cuidar da coluna. “Eu entrei no Supremo
sem problema nenhum, era um atleta, jogava futebol, vôlei de praia”, contou.
Vestido esportivamente – tênis, jeans, camisa de malha e casaco – o ministro
estava com ótima aparência.
Em agosto de 2007, aproximando-se o julgamento do mensalão, caso do qual era
relator, as dores aumentaram. “Não tinha nenhuma condição de proferir aquele
voto sentado, pedi um púlpito, e o proferi em pé”, lembrou. “Foram 35 horas de
julgamento, durante uma semana.”
O ministro não gosta de perguntas sobre a doença. Desconfia que Gilmar Mendes
espalha que ele exagera. A doença tem nome? “Lombalgia crônica, com dor
extremamente forte na L5-S1”, respondeu, falando de vértebras próximas ao
cóccix. “Ela se espalha por toda a região glútea entre dez e quinze minutos
depois que eu sento.”
Não foi a primeira vez que o ministro licenciou-se para tratamento, mas foi a
primeira que tirou o benefício por um período tão grande, e, segundo ele
próprio, inédito na casa. “Eu fico até chateado, porque sobrecarrega os
demais”, disse. “Mas fazer um tratamento concentrado é o único jeito de curar”,
afirmou. Lembrado que o ministro Celso de Mello também tem problemas sérios de
coluna – está usando até cinta, e também fica no senta-levanta –, e nem por
isso licenciou-se por tanto tempo, Barbosa comentou: “O ministro Celso está
cometendo o mesmo erro que eu já cometi.”
Ele recebera naqueles dias um telefonema de Eros Grau, convidando-o para uma
visita à sua casa. “Irei”, disse-me Barbosa. “Gosto do ministro Eros.” Os dois
protagonizaram, no entanto, uma briga tremenda. Foi em agosto de 2008, quando
ambos estavam em temporada no Tribunal Superior Eleitoral. Durante uma sessão,
Grau enviou um e-mail ao colega dizendo que havia concedido um habeas corpus
para o advogado Humberto Braz, ligado ao banqueiro Daniel Dantas. Barbosa
perguntou, na resposta, se Grau estava “louco” para soltar um acusado de
tentativa de suborno de um delegado da Polícia Federal. No intervalo da sessão,
olharam-se feio. Grau disse, “com fingida exaltação”, segundo o relato de
Barbosa, algo como “Olhe, não me chame de louco”. E ficou nisso.
No dia seguinte, no salão privativo de lanches do Supremo, Grau disse que o
comentário do dia dos jornais era a liminar de Barbosa dando o direito de
Daniel Dantas ficar calado na Comissão Parlamentar de Inquérito. Ou seja,
Barbosa estava mais malfalado do que ele, Grau, que soltara Humberto Braz. “Mas
que bobagem é essa, ministro Eros?”, reagiu Barbosa. Grau começou a se alterar,
e o colega o cortou: “Você é mesmo um babaca, um velho patético, é tão ridículo
que quer ir para a Academia Brasileira de Letras. Aprende primeiro a escrever!”
Barbosa também lembrou o bate-boca, em abril de 2009 – que até hoje é hit no
YouTube – no qual disse em plenário a Gilmar Mendes: “Vossa Excelência não está
falando com os seus capangas no Mato Grosso.” Explicou-me que a frase foi uma
reação a “um ato de racismo. Ele quis me humilhar. Foi como se dissesse que eu
não contava nada ali, tipo ‘você é negro, fique no seu lugar’”. Depois da
discussão, os ministros Celso de Mello e Ayres Britto foram ao gabinete de
Barbosa pedir que se retratasse. “Recusei”, contou ele. Grau e Mendes não
quiseram rememorar as brigas. “Os problemas foram superados”, disse Grau. “Se
você tivesse as dores que ele tem, implicaria até com pai e mãe.”
Joaquim Barbosa nasceu em uma família modesta. Concluir a faculdade de direito
foi uma conquista para ele, que era arrimo de família. Graças a um concurso,
tornou-se funcionário do Itamaraty, serviu por seis meses na embaixada
brasileira na Finlândia e, na volta, tentou entrar para o corpo diplomático.
Passou em todos os exames, mas foi reprovado na prova oral, segundo ele “por
puro preconceito”. Fez um doutorado na Universidade de Paris, com tese sobre o
Supremo Tribunal Federal (lá publicada, mas nunca traduzida para o português
por desinteresse assumido do autor) e deu aulas, como professor visitante, em
duas universidades americanas.
Pouco depois de ser eleito deputado federal pelo PT, em 2002, o advogado Luiz
Eduardo Greenhalgh foi ao escritório de Márcio Thomaz Bastos, já sacramentado
ministro da Justiça e em vias de tomar posse. Dizendo que falava em nome do
presidente, Bastos lhe perguntou se queria ser ministro do Supremo Tribunal
Federal. “Não quero, prefiro exercer o mandato e, sendo possível, ser o
presidente da Comissão de Constituição e Justiça”, respondeu.
Greenhalgh foi um dos primeiros a ouvir Lula falar de Joaquim Barbosa. Estavam
num avião, com dona Marisa e Antonio Palocci. “Vou indicar um negro para o
Supremo”, disse Lula. “Se for só por ser negro, não é uma boa”, retrucou o
advogado. Lula perguntou-lhe se conhecia Barbosa, que fora indicado por frei
Betto. Não conhecia, mas foi investigar. Voltou ao presidente dias depois e
contou que, numa briga de casal, Barbosa batera na mulher, ela prestara queixa
na polícia e o caso rendera um processo. “As feministas do PT não vão gostar
nada disso”, disse Greenhalgh ao presidente.
Lula lhe respondeu que já sabia da história e o problema fora contornado. Por
intermédio de Thomaz Bastos, soube que a ex-mulher de Barbosa escrevera uma
carta apaziguadora, atribuindo a briga que a levara à polícia a divergências
naturais de um casal. Ao convidar Barbosa a integrar o Supremo, o presidente
lhe disse: “A única restrição ao seu nome veio do Greenhalgh.” O advogado não
gostou da história. “Lula queimou o meu filme com o Joaquim”, disse. “E o
Joaquim só complicou o governo, como se viu no caso do mensalão. Bem feito!”
Na padaria, o ministro contou que já estava separado da mulher, mas viviam
brigando pela guarda do filho. Numa discussão mais séria, ele puxou a criança
do colo dela, ela teria reagido. “Ambos perdemos a cabeça”, disse. O boletim de
ocorrência virou um processo. No Ministério Público Federal, onde Barbosa
trabalhava, o parecer foi dado pelo procurador Cláudio Fonteles, mais tarde
procurador-geral da República. Ele propôs o arquivamento, que foi aceito pela
Justiça. “Não havia nada além de uma briga de casal perfeitamente
compreensível”, disse o procurador, hoje aposentado, na sua casa do Lago Sul.
Na sabatina do Senado, a petista Serys Slhessarenko perguntou a Barbosa sobre a
desavença com a mulher. Ele respondeu que era um fato superado, que envolveu a
disputa pela guarda de um filho. A ex-mulher e o filho estavam presentes à
sessão.
O primeiro palanque no qual Peluso subiu, horas depois de eleito presidente, em
10 de março, foi numa festa do site Consultor Jurídico, o Conjur. O palanque
foi montado no salão principal do Supremo para comemorar o lançamento da edição
de 2010 do Anuário da Justiça, publicado pelo site e pela Fundação
Armando Álvares Penteado, a Faap. Mendes, Celso de Mello, Toffoli, Britto e
Lewandowski estavam no tablado de honra com Peluso. Marco Aurélio circulou pelo
salão, em meio a cerca de 300 pessoas, entre desembargadores, juízes,
promotores e advogados de Brasília, do Rio e de São Paulo.
O Anuário é uma revista grossa que é produzida a um custo de cerca de
400 mil reais, bancados pela Fundação Armando Álvares Penteado. A tiragem
é de 20 mil exemplares, dos quais 12 mil são distribuídos pela Faap em
gabinetes de ministros, parlamentares, governadores e prefeitos. Ele funciona
como um quem-é-quem do Judiciário, entremeado de anúncios de escritórios de
advocacia. “O Anuário dá uma contribuição decisiva para conhecer o Poder
Judiciário brasileiro”, disse Gilmar Mendes no seu discurso. “É jornalismo
judicial especializado.”
O dono do Conjur e editor do Anuário é o jornalista Márcio Chaer,
proprietário também de uma assessoria de imprensa, a Original 123. As empresas
estão instaladas numa casa de três andares na Vila Madalena, em São Paulo. O
site faz uma cobertura intensa e extensa dos eventos e decisões do Poder
Judiciário. Chaer é amigo de Guiomar e Gilmar Mendes. Troca e-mails e
telefonemas amiúde com o juiz.
A Faap responde a condenações e processos por crimes contra a ordem tributária
e o sistema financeiro. Alguns desses processos estão no Supremo. A pessoa
jurídica do Conjur, a Dublê Editorial, também tem processos tramitando no
tribunal. “Não vejo problema nenhum de lançar o Anuário no Supremo”,
disse Mendes. O primeiro lançamento foi feito em 2007, quando a presidente era
a ministra Ellen Gracie. Ela se declara suspeita quando recebe processos que
envolvam a Faap. Joaquim Barbosa acha “um escândalo” que o Anuário seja
lançado no Supremo.
Chaer também não vê problemas: “O presidente da República não visita os
jornais? É a mesma coisa. Além do mais, todo tribunal lança livros, e até a
Suprema Corte tem uma livraria”, disse, mostrando um volume que comprou lá.
O professor de direito Conrado Hübner Mendes, doutor em ciência política pela
Universidade de São Paulo e autor do livro Controle de Constitucionalidade e
Democracia, tem outra opinião: “O Anuário pode até produzir
informações de interesse público, mas não é isso que está em questão. Uma
empresa privada não deveria ter o privilégio de ter seu produto promovido
dentro do próprio tribunal. A integridade das instituições depende da separação
entre o público e o privado.”
Em boa parte, os clientes da assessoria Original 123 são escritórios de
advocacia. Teriam contratado a empresa pelo fato de Chaer ser amigo de Mendes e
lançar o Anuário no Supremo? “De forma alguma, esses escritórios nem
atuam no Supremo”, respondeu. E ligou em seguida para um funcionário da Original.
“Quantos dos nossos clientes atuam no Supremo?”, perguntou. “Praticamente
todos”, respondeu o funcionário. “Mas isso não quer dizer absolutamente nada”,
esclareceu Chaer.
Quando era ministro da Justiça, Thomaz Bastos perguntou a Manuel Alceu Affonso
Ferreira, um dos advogados mais respeitados de São Paulo, se queria ser
ministro do Superior Tribunal de Justiça. Ferreira declinou. “Se tivesse vindo
um convite para o STF, muito me envaideceria, mas também não aceitaria”, disse
ele no seu escritório. “Não aceitaria porque jamais me submeteria a
peregrinações prévias por gabinetes executivos e legislativos, em busca de
apoios políticos. Digo isso sem reprovar aqueles que o fazem, ou fizeram –
afinal, no mundo real, infelizmente, essa é a regra do jogo. A procura dos tais
apoios, além de avessa à minha natureza, não me parece compatível com a
independência entre os poderes e a dignidade do cargo.”
Manuel Alceu considera que num caso recente, de princípio, o Supremo teve uma
atitude decepcionante. No ano passado, ele arguiu a inconstitucionalidade da
censura a que O Estado de S. Paulo vinha sendo submetido há meses.
Perdeu por 6 a 3. “Apesar do bálsamo dos votos dos ministros Ayres Britto,
Celso de Mello e Cármen Lúcia, fiquei profundamente decepcionado com a decisão”,
disse. “A petição foi rejeitada majoritariamente por tecnicalidades processuais
equivocadas.” E voltou à mítica cena do ministro Adauto Lúcio Cardoso que,
protestando por uma decisão favorável à censura da ditadura, teria tirado a
toga e a arremessado longe. “A lembrança da heroica atitude do ministro Adauto,
tomada em tempos autoritários, convencia-me de que agora, em ambiente
democrático, se poria fim à arbitrariedade que vitimou e continua a vitimar o
jornal paulista. Mas me enganei.”
Conhecido pela linguagem poética com que tempera seus votos, Ayres Britto é dos
ministros que nunca esquecem que seis câmeras de televisão captam tudo o que
acontece nas sessões plenárias. Talvez perca nisso apenas para o ministro Marco
Aurélio, quase um profissional. Britto também é bom em elaborar frases com
grande chance de repercutir nos jornais no dia seguinte. A última que fez
sucesso, no julgamento do habeas corpus do governador José Roberto Arruda foi:
“Infelizmente, há quem chegue às maiores alturas para cometer as maiores
baixezas.”
“Os ministros são figuras midiáticas e têm que saber administrar essa
notoriedade”, ele disse. “Eu não me sinto estrela, nem pop star, e nem
assediado. Encaro com a maior naturalidade. Se me pedirem para tirar dez fotos,
eu tiro as dez. Os ministros não são apenas julgadores, eles têm satisfações a
dar ao público. É um dever se comunicar, desde que esse contato não resvale
para o vedetismo e o culto da personalidade.” A última frase é um recado é para
Gilmar Mendes? “Há um de nós que fala demais”, respondeu Ayres Britto, e foi em
frente: “O Gilmar é agressivo, rude, provocativo. Usa uma linguagem que ofende
as pessoas. E não há necessidade disso. Dá para combinar leveza e firmeza.”
Tomado por um espírito de crítica republicana, com a melhor das intenções, ele
fez uma análise emocional do Supremo:
O que eu vejo aqui é certa competição surda, enrustida, latente, uma
competitividade não assumida, que não tem sentido e é absurda. O Supremo não
está a salvo de práticas reveladoras de uma certa pequenez de alma. Aqui e ali,
um ou outro ministro precisa do confronto pessoal e da disputa de espaço para
demarcar seu campo. Isso é meio mórbido. Quem chega a ministro do
Supremo tem uma oportunidade tão maravilhosa de servir ao país que não tem o
direito ao mau humor, quanto mais de viver às turras com os colegas, disputando
espaços. Isso é absolutamente infantil.